Vanessa.Benko 10/06/2023
Entendera que podia acordar um dia e se descobrir aos pedaços
Com um estilo narrativo carregado de franqueza, a autora nos transporta para um contexto em que o fantástico é tido como normal, mergulhando-nos em memórias fragmentadas e nos desafiando a desvendar as complexas histórias de seus personagens ao longo das páginas. Uma narrativa não linear e repleta de simbologias.
O objetivo da autora não é apenas descrever a escravidão nos Estados Unidos, mas fazer com que a sintamos profundamente. Ela nos oferece um relato brutal dessa época sombria, despertando uma compreensão visceral da dor, sofrimento e desumanização enfrentados pelos escravos. Ao invés de se ater a uma abordagem histórica tradicional, a autora nos coloca diante de personagens com passados pesados, que passaram por um processo de constatação e aceitação passiva de sua própria impotência.
Uma das características marcantes do livro é a peculiar caracterização dos personagens. Eles possuem uma necessidade incessante de nomear seus sentimentos e acontecimentos, o que nos permite mergulhar ainda mais na profundidade de suas experiências.
Além disso, o livro apresenta pequenas histórias paralelas que enriquecem a trama principal, acrescentando camadas de significado e complexidade. Cada personagem possui uma visão diferente do futuro e uma relação distinta com o tempo, absorvendo suas passagens de formas variadas. Através dessas nuances, a autora explora como a individualidade pode ser roubada de uma pessoa e como o tempo e as experiências moldam e mudam nossos desejos.
Ao longo da narrativa, somos confrontados com acontecimentos que afetam os sentimentos dos personagens. Após tantos traumas, a indiferença começa a ocupar o lugar da tristeza, demonstrando a dura realidade de viver sob a opressão. A protagonista, Seth, carrega consigo um sentimento de culpa avassalador, que a leva a fazer um tremendo esforço para esquecer o que aconteceu – principalmente o que fez.
Seu arco narrativo representa a luta contra a opressão e a busca pela liberdade, tanto física quanto emocional, revelando gradualmente as camadas de sofrimento e dor que a personagem carrega consigo. Sua determinação em esquecer o passado é um esforço desesperado para encontrar alguma forma de alívio, mas também uma maneira de sobreviver em um mundo que tenta negar sua humanidade.
No entanto, quando Amada, sua filha perdida, retorna inesperadamente, a vida de Seth é transformada. A presença de Amada desencadeia uma jornada de redescoberta e reconciliação, em que Seth é forçada a confrontar e ressignificar os traumas e a encontrar uma forma de cura – tudo isso somado a uma sensação de liberdade por não ter mais que esquecer.
Denver é uma figura emblemática que nos conduz por uma jornada de descoberta e resistência em meio a um passado doloroso e uma realidade desafiadora. Sua trajetória é marcada por uma busca por identidade, conexão e pertencimento. Vivendo à sombra dos traumas e segredos de sua mãe - ela desconhece o mundo exterior e se apega a cada migalha de informação sobre o passado de sua mãe, buscando entender sua própria história e encontrar um senso de pertencimento em um mundo que a rejeita.
Ao longo da narrativa, Denver passa por uma jornada de autodescoberta, desafiando as limitações impostas a ela. Ela desenvolve uma curiosidade e coragem crescentes, buscando explorar o mundo além das paredes de sua casa e confrontar as verdades ocultas sobre sua própria família. Sua capacidade de se libertar da prisão emocional em que vive é um lembrete poderoso do poder do conhecimento e da conexão com as raízes.
Amada, no contexto fantástico do livro, é privada de amadurecer. A presença sobrenatural de Amada pode representar a persistência dos eventos passados e a influência duradoura que têm sobre as gerações subsequentes. Também é um convite para que nós reflitamos sobre a relação entre a vida e a morte, a perda e a memória. Sua presença atua como um lembrete constante das consequências dos atos passados e das histórias não resolvidas.
Baby Suggs representa uma figura materna e espiritual que encarna tanto a resiliência quanto a fragilidade da comunidade negra. É retratada como uma mulher sábia e poderosa, capaz de reunir as pessoas em torno dela. Ela exerce uma influência espiritual e emocional significativa na comunidade, transmitindo mensagens de autoaceitação e resgate da dignidade. No entanto, a personagem de Baby Suggs também representa a vulnerabilidade das pessoas negras diante da opressão. Apesar de sua sabedoria e liderança espiritual, ela não pode reconstruir completamente o que foi perdido. Sua história pessoal é marcada por lutas e perdas, evidenciando as limitações impostas pelo sistema racista e opressivo. Sua presença nos lembra a importância do afeto e do apoio emocional na busca pela cura e pelo empoderamento.
Essas personagens femininas são poderosas, representando as muitas mulheres negras que lutaram contra a opressão e a injustiça durante a escravidão. Elas personificam a força interior e a resiliência necessárias para sobreviver em um mundo que busca silenciar e apagar sua história.
Além disso, Morrison dá destaque aos personagens negros homens e aos seus sofrimentos – que são em alguns aspectos diferentes dos das mulheres, mas todos vividos de forma brutal. O livro nos confronta com a constatação de quantas histórias passadas nesse contexto ainda são indizíveis e inexprimidas, lançando luz sobre a profundidade das feridas históricas e a urgência de enfrentá-las.
Ao abordar o tema da maternidade, "Amada" nos leva a questionar até que ponto uma pessoa pode chegar onde é aceitável matar? Quais os motivos e justificativas para chegar a uma encruzilhada de desespero? Como o medo e o julgamento após um acontecimento traumático afeta a comunidade?
É um livro profundamente dolorido. Mas que seja encarado principalmente como um símbolo da resiliência e da capacidade de sobreviver e florescer em meio à adversidade. Que ele represente as vozes silenciadas e as experiências ocultas daqueles que enfrentaram opressão e marginalização. Sua busca por conexão, identidade e liberdade nos lembra da importância de ouvir e valorizar as histórias daqueles que foram marginalizados pela sociedade e lutarmos pela construção de um futuro mais justo e igualitário.