Lucas 07/09/2017
O tributo à história do Rio Grande do Sul está completo: Resenha para os três volumes
O Arquipélago e seus três volumes, quando foram lançados entre 1961 e 1962, causaram certo espanto. Isso porque o autor, Erico Verissimo, estava se recuperando de sucessivos problemas cardíacos, que acabariam por matá-lo em 1975. Para o bem da literatura brasileira (e porque não, da mundial), ele ainda teve tempo de concluir o maior trabalho da sua vida: a saga O Tempo e O Vento.
De certo modo, seu esforço pessoal era lógico: O Retrato, a parte central da trilogia era, definido pelo próprio Verissimo, como inferior a'O Continente, obra-prima da vida literária do autor e um monumento ímpar ao povo do Rio Grande do Sul. De fato, a segunda parte da saga é problemática por centrar-se na formação do Dr. Rodrigo Cambará, o grande protagonista da trilogia, mas dono de uma incontestável enxurrada de críticas até mesmo de estudiosos da obra. O Arquipélago surge para "suprir" um certo vazio que ficou após o seu antecessor, fechando magistralmente a maior trajetória histórica-literária da literatura nacional.
Seguindo a mesma estrutura narrativa que faz dessa saga tão especial (partindo do "presente", com várias "voltas" ao passado, de um forma muito similar a'O Continente), O Arquipélago continua o desenvolvido em O Retrato, partindo de 1922 e se estendendo até a queda de Getúlio Vargas, no final de 1945. Nas primeiras páginas (em termos cronológicos), Dr. Rodrigo, agora deputado estadual, ainda enigmático, um pouco machista e egoísta, mas inegavelmente apaixonado pela vida, acaba de retornar do Rio de Janeiro, onde esteve com a esposa Flora Quadros (admirável personagem). Já de cara, o leitor tem um panorama prático do contexto, principalmente político, da época, com os primeiros movimentos armados do tenentismo. Aliás, este é apenas um detalhe que Verissimo usa para encantar o leitor da trilogia: a facilidade com que ele mistura eventos históricos aos fatos fictícios de sua narrativa, fazendo com que ela seja um espelho impecável da realidade gaúcha e nacional da época em questão.
Ainda em 1922, Rodrigo e sua família, históricos chimangos de Santa Fé, rompem com o governo do estado (presidido com mãos de ferro por Borges de Medeiros, que viria a ser padrinho político de Getúlio Vargas) e partem, ao lado dos antes inimigos maragatos, para uma revolta contra o sistema político da época. É a Revolução de 1923, último grande conflito civil do Rio Grande, que bombardeia as páginas d'O Arquipélago com história e situações dramáticas, que simbolizam perfeitamente o que de fato ocorreu. Nesse contexto, Erico também direciona sua narrativa às mulheres, cuja força é um dos grandes pilares do fascínio que toda a saga desperta.
Neste aspecto feminino, é digna de nota a personagem Maria Valéria Terra, a "Dinda". De certo modo, é a única mulher que participa ativamente dos fatos históricos que vinham ocorrendo desde a Revolução Federalista (1893). Ela serve como um monumento às mulheres da época: fortes, responsáveis, sábias, rígidas, mas, acima de tudo, protetoras. Um resumo disso se passa num dos últimos capítulos do primeiro volume d'O Arquipélago, onde ela protagoniza um diálogo sublime com Flora, que, na visão particular do autor da presente resenha, corresponde a um dos maiores momentos literários da história da literatura. Maria Valéria é, com isso tudo, uma espécie de "avó do Rio Grande", como o leitor irá perceber.
Quem direciona, na narrativa, o detalhamento do passado, é Floriano Cambará, filho primogênito do Dr. Rodrigo. Na "atualidade" (1945), é por meio dele que o leitor vai, aos poucos, entendendo os motivos que causaram o total desmantelamento do clã Terra-Cambará ao longo dos anos. As razões são diversas: os rumos que a história do Brasil "empurrou" à família, tragédias, divergências políticas, entre outros, afastaram a estirpe da essência do que é ser do sul do país. Um agravante é que este distanciamento não deixa de ter muita realidade prática atual na região. Muito das tradições e costumes cotidianos acabaram se perdendo com a vinda dos anos, mas O Arquipélago se debruça sobre uma questão prática e provocadora de muitos debates atualmente no interior sulista: a criação dos filhos. Não raro é que se diga por aqui que é mais fácil criar filhos no interior, na zona rural mesmo, na "lida" do campo, do que nas cidades, onde o indivíduo cresce com certo desapego a origem da sua família, a sua "casta". É natural isso, não vem a ser um defeito dos "urbanos", mas quem se desenvolve em um meio rural, baseado em pequenas propriedades ou agricultura familiar, adquire mais facilmente o senso de companheirismo, de pertencimento, que ajuda a definir um pouco do que é ser do sul. Assim, Verissimo, genialmente, resumiu na família Terra Cambará um dilema profundamente popular no Rio Grande a partir da segunda metade do século XX, que é um certo desapego ao que ajudou a constituir a imagem única que o sul do pais possui no restante do Brasil.
O pano de fundo fictício de tudo isso, a simpática e representativa (em termos de realidade das cidades gaúchas) cidade de Santa Fé passa pelo mesmo processo de "aperfeiçoamento". É fascinante ao leitor lembrar que a cidade nasceu com a vinda de alguns caboclos em humildes carroças (dentre as quais estavam Ana Terra e seu filho Pedro, que começaram toda a estirpe), ainda em O Continente e acompanhar o seu desenvolvimento: o crescimento da praça municipal com a sua figueira, os clubes de recreação, as colônias alemãs e italianas, as comunidades e distritos mais afastados do "centro", a vinda de forasteiros que ali ficavam, as missas nas manhãs de domingo, o minuano no inverno, as coxilhas e as estâncias, os pés de bergamota... Nada mais poderia simbolizar melhor a história das cidades do interior dos três estados do sul do Brasil.
Como se pode imaginar, entre 1922 e 1945 houve uma imensidade de fatos históricos relevantes em termos nacionais e globais. A ascensão dos EUA nos anos 20, a crise de 29, os regimes fascistas e comunistas europeus, a Segunda Guerra, etc. Além disso, esse período comportou no Brasil o fim da República Velha, com a chegada ao poder de Getúlio Vargas. Pela proximidade geográfica, a Revolução de 30 e tudo que a antecedeu (a Coluna Prestes, por exemplo) possui grande destaque na narrativa. Erico fornece os pormenores dessas "pelejas", explicando todas as questões envolvidas e a contradição que as partes conflitantes acabavam desenvolvendo com o tempo. A eterna rivalidade entre chimangos e maragatos, que exerce certa influência até hoje na cultura gaúcha é um grande exemplo disso: as diferenças entre ambos os grupos eram muito mais profundas que a simples cor do lenço que seus seguidores envergavam, e que o autor explica tão bem, não só em O Arquipélago, como nas duas outras obras. Outro exemplo relevante dessa prática narrativa está em demonstrar as discordâncias e todos os pontos de vista inerentes ao Golpe do Estado Novo, que Getúlio protagonizou em 1937 e que provocou grandes divergências entre seus aliados e até mesmo dentro da família Terra Cambará, que dali em diante realmente não foi mais a mesma.
Apesar da nítida preocupação do autor em mencionar e "trabalhar" com fatos históricos, é fundamental que o futuro leitor de O Arquipélago tenha uma noção prévia do contexto político gaúcho da época, pesquisando a respeito de, pelo menos, duas figuras centrais: Borges de Medeiros, sucessor do histórico chimango Júlio de Castilhos e Getúlio Vargas, que dispensa apresentações prévias. Mesmo que o leitor leia a saga em um fôlego só, é imprescindível que, antes dessa última parte, ele se debruce sobre, principalmente, o futuro presidente e sua habilidade única de aproveitar conjecturas e esperar a hora certa para agir, fazendo tudo isso com uma boa dose de antiética, que, de certa maneira, pode ser interpretada como grande entendimento político.
Se a história do Rio Grande do Sul conduz, amarra e afasta os personagens da ficção de O Tempo e O Vento, ela também fica num segundo plano nos momentos mais apropriados. A ficção é crível sob o ponto de vista histórico, mas também é intrincada, bem elaborada e muito emocionante. Floriano Cambará e a busca do seu "Eu", da sua identidade, é habilmente bem construído, especialmente em seu interior. As suas incertezas e traumas, provocadas, em boa parte, pela personalidade radicalmente diferente do pai, fazem com que os capítulos da Reunião de Família (que se passam no fim de 1945) sejam repletos de reflexões e lembranças, além de relatar um eminente clima de tensão provocado por um polêmico triângulo amoroso. A necessidade que tinha Floriano de encontrar-se a si mesmo é associada a sua carreira de escritor: estagnada e sem brilho. No entanto, a fonte de sua inspiração, para escrever um romance épico, está envolvida em uma crosta resistente, mas que vai se corroendo aos poucos. Como Floriano foi inspirado no próprio autor, os seus relatos e anseios fazem com que o leitor acabe adquirindo uma ideia bem satisfatória dos questionamentos que Verissimo deve ter tido ao elaborar toda a saga: as dificuldades de montar uma obra permeada pela ficção e história são quase infinitas, como o leitor irá perceber.
Ana Terra, Bibiana Terra, Capitão Rodrigo Severo Cambará, Dr. Rodrigo e todos os seus descendentes não são meros personagens de um romance histórico: são tipos tangíveis, símbolos do sul do Brasil e ícones maiores das infinitas mensagens de superação, personalidade forte e trabalho que toda a saga reproduz. Tudo isso conduz a um desfecho único, que, apesar de estar longe de surpreender, emociona o leitor nas últimas linhas de O Arquipélago. A última parte da saga é, assim, justamente avaliada como o último ato de construção de um monumento que homenageia o povo do sul do país, que muito contribuiu e muito contribuirá para o Brasil.