Oz 16/11/2017
“As Três Marias” é um romance de elevado teor autobiográfico narrado em primeira pessoa por uma Rachel de Queiroz travestida na protagonista Maria Augusta, a Guta. Não que eu tenha alguma presunção de afirmar que Guta é um mero reflexo da autora, compartilhando suas ações e pensamentos. No entanto, os textos de apoio deixam bem claro as fortes semelhanças nas caracterizações e trajetórias entre os personagens da realidade e da ficção. Ainda que esse tipo de abordagem sempre traga consigo um risco inerente de resultar em uma espécie de “autobiografia velada”, traz também uma certa elevação na expectativa sobre a história que será contada. Afinal, não há forma melhor de destrinchar e desenvolver os pormenores da narrativa do que aproveitar a experiência da própria vivência.
A partir disso, acompanhamos, em um primeiro momento, nossa protagonista nos seus primeiros anos de internato, onde conhece Maria da Glória e Maria José (personagens baseadas em duas grandes amigas da autora), que se tornam grandes amigas e formam o grupo que dá nome ao livro. A história segue sempre do ponto de vista de Guta, que sai do internato, volta para casa e, logo em seguida, consegue um emprego de datilógrafa em Fortaleza. Um ponto de vista sombrio e incômodo, diga-se de passagem, já que a moça parece não sentir pertencer a nenhum lugar. Ela afirma que o ar do internato a sufocava, impondo anos excessivos de infância, em uma “sensação humilhante de fracasso, de retardamento, de mocidade perdida”. Desde então, passa a pensar, vez ou outra, em suicídio. Em casa, a sensação era a mesma: “E em casa a monotonia era tão opressora, tão constante, que chegava a doer como um calo de sangue”. Não contente com essa infelicidade – que me permitam o paradoxo - os problemas na cidade continuavam para Guta: “E na cidade, a vida era igualmente monótona, cheia de outros pequenos deveres enfadonhos”.
Assim, vamos conhecendo seus receios e seus sentimentos, bem como suas aflições em relação aos seus romances um tanto quanto românticos. Pode-se dizer que o “grosso” do livro gira em torno desse ponto, ainda que somos apresentados, em pinceladas esparsas, às dificuldades de outras personagens femininas. São personagens que vão pipocando na trama e apresentam destinos quase sempre infelizes, como virar prostituta, morrer no parto ou mesmo ser esfaqueada pela inveja do marido.
E por falar em marido, é preciso ressaltar que os personagens masculinos acabam ficando, se não no segundo plano, em um plano não muito atraente. Geralmente são homens aproveitadores, insensíveis ou, ao menos, de pouca iniciativa (se deixarmos de lado as iniciativas sexuais, é claro). As dificuldades e o enfrentamento das mulheres nas questões do dia-a-dia recebem um destaque maior, o que sugere um tom mais feminista ao romance, ainda que a própria autora não gostasse desse rótulo. Ressalto, também, a dúvida que surge no fim do livro a respeito de uma certa interrupção abrupta (quem leu sabe) e que nos lembra, novamente, que temos em mãos um livro com uma boa carga da realidade vivida pela própria Rachel de Queiroz.
Dito isso, tenho que admitir que não posso dizer que gostei muito da história que foi contada. Infelizmente, a leitura não atingiu minhas expectativas. Em nenhum momento a narrativa me cativou, muito menos a protagonista. Os pensamentos de Guta geralmente me soavam muito rasos e, por vezes, inocentes. Ainda que isso seja uma característica de construção da própria personagem, acompanhar esse tipo de narrador não é muito instigante, embora seja uma narrativa fluida e rápida de ler. Não consegui gerar grande empatia em relação aos dramas de Guta. Adicionalmente, achei que a relação entre as amigas seria muito mais explorada e que a atenção despendida à Maria da Glória e Maria José fosse mais profunda, ainda que sempre fosse nos mostrada do ponto de vista de Guta. Elas acabam se tornando mais personagens secundárias do que qualquer outra coisa, influenciando apenas marginalmente a trama. Vejo, aqui, um grande potencial desperdiçado, talvez até por conta de a autora ter tentado ser fiel demais à realidade ou não ter conseguido se desvencilhar disso (o risco que chamei de uma “autobiografia velada”).
Por esses motivos, acho que nada mais justo do que classificar esse livro com três estrelas, uma para cada Maria.
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