Sthéfane 27/04/2024
"No exato momento que termina, transforma-se em poesia."
"Cheguei à beira da água, de onde pessoas com saias suspensas e calças arregaçadas atiravam flores brancas ao mar. Quebrou uma onda mais forte, recuei para não molhar os sapatos; a espuma chegou aos meus pés e um ramo de lírios encalhou na areia. Significava um pedido recusado, por ambicioso demais, ou pouco intenso, ou enigmático, ou indecoroso, sabe lá. Colhi o ramo, com suas três flores ensopadas, mirradas mas ainda inteiras, e pensei em avançar mar adentro de terno e tudo, para atirá-lo além da arrebentação. Mas talvez Iemanjá se aborrecesse por ver aquele lírio repetido, um lírio que acabara de rechaçar. Lírios, no entanto, são lírios, são todos iguais, e ela não haveria de estar ali julgando lírios, mas sim pedidos. Então fechei os olhos e cheguei a dar dois, três passos, até atinar que não tinha pedido nenhum para fazer. Eu que, sem acreditar em Iemanjá, sempre lhe lancei oferendas e fui atendido, agora era um homem crédulo com uma oferenda inútil na mão."
Terminei esse livro um dia depois dos 50 anos da Revolução de Cravos , achei até ironia. Havia recebido uma notícia difícil de digerir mas consegui esquecer tudo, pois neste livro voltei a saber o que é viver a obra. Conhecia Budapeste e o Rio de Janeiro como se eu fosse de lá.
Escolher somente uma passagem deste livro para iniciar a resenha foi um desafio, pois de tantos livros que já li, poucos possuem a delicadeza da escrita de Chico Buarque.
Talvez a escrita seja dessa forma, pois o narrador trata-se de um escritor e com isso, me peguei questionando se de fato a mente dos literatos funcionassem de tal forma que tudo o que lhes vêm à cabeça vêm em poesia.
O livro fala de língua, de idioma e assim, tive uma forte certeza: nada é tão satisfatório quanto ler um livro escrito em nossa língua materna. Não digo traduzido, mas escrito, idealizado e imaginado em português... autores nacionais, cariocas, paulistas, pernambucanos, alagoenses com seus dialetos, suas maneiras de dizer e seu idioma que conheço bem, desde que falei a minha primeira palavra.
A história é algo tão bem construído que desejei que, assim como narrado, um livro fosse feito em minhas costas, meus braços, pernas e consideraria ignorar as
cócegas para que minha barriga se tornasse também objeto de literatura. Desejava que passassem uma caneta pelo meu corpo e escrevessem o que viria a ser o prólogo de um romance autobiográfico e que este momento fizesse parte da obra para que ele "escrevesse o livro ao mesmo tempo que o livro acontecia".
Este foi meu primeiro livro e romance de Chico Buarque, mas afirmo de antemão sua genialidade como escritor. A história não é daquelas que se encontra facilmente e o movimento do protagonista não se pode prever.
Recomendo este livro a todos que possuam uma visão muito clara sobre si mesmos e encaram a vida de maneira poética.
Muito obrigada Chico por me proporcionar esses momentos de deleite com Zsoze Kósta e seu romance que não é seu.