alinevianadp 14/01/2022
Genial do início ao fim
"Naquelas horas, ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário. Porque para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele".
Considero uma enorme responsabilidade tecer qualquer tipo de comentário sobre "Budapeste". Qualquer pessoa que ouse falar algo sobre a obra corre o risco de ser muito superficial, porque o livro é de uma profundidade e de uma genialidade únicas, que vão muito além das suas 174 páginas. E depois que você acaba de ler, você ainda precisa de um tempo para ruminar a leitura. Sem esse tempo você jamais poderá dizer que aproveitou "Budapeste" ao máximo, ou que extraiu tudo o que o livro tinha para oferecer. Não foi à toa que Saramago afirmou: "Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro".
"Budapeste" é um livro de leitura muito fluida. Na primeira vez que o li, pouco tempo depois de sua publicação, creio que concluí a tarefa em uma ou duas sentadas. Quando o reli, acho que aproveitei melhor a experiência, pois percebi um universo ainda maior de questões exploradas.
Na minha opinião, a escrita de Chico Buarque é muito semelhante à escrita de Machado de Assis: fluidez, um humor característico e inteligente, e um uso muito apropriado e cuidadoso das palavras.
O livro conta a história do escritor anônimo José Costa, que, residente no Rio de Janeiro, foi parar em Budapeste pela primeira vez devido a um pouso imprevisto quando ele voava de Istambul para Frankfurt. Devido ao pouso forçado, a companhia aérea ofereceu para os passageiros do avião uma noite em um hotel na capital húngara. E foi nessa noite, assistindo ao telejornal no quarto de hotel, que foi despertado em José Costa um interesse pelo húngaro ("única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita"). Sua primeira impressão era de que seria impossível saber onde começava e onde terminava cada palavra; para ele, destacar um vocábulo do outro "seria como pretender cortar um rio a facas"). Além do interesse pelo idioma, a cidade de Budapeste despertou em José Costa uma segunda paixão: Kriska, uma professora de húngaro que dava aulas particulares para José em sua casa e que, durante os finais de semana em que seu filho estava com o pai, passeava com ele pelas ruas da cidade. José Costa era um ghost-writer que recebia seus clientes num escritório pequeno no centro do Rio. Ele dividia a sociedade com seu amigo Álvaro, que se dedicava a angariar os clientes enquanto era de José Costa todo o esforço de escrever, sob encomenda, os mais variados tipos de texto, como provas, cartas de amor, peças jurídicas, artigos de jornal e até mesmo livros autobiográficos. José era casado com Vanda, uma jornalista em ascensão que nem sabia direito de que espécie de escritor ele se tratava. Os dois tinham um filho, Joaquinzinho, com quem o escritor não tinha uma relação muito amorosa.
O livro se desenvolve sem muita linearidade cronológica entre Budapeste e o Rio de Janeiro, revelando as duas vidas que José Costa tinha nas duas cidades, e as duas pessoas que ele era: uma na capital brasileira e outra na capital húngara. José via seu ofício de escritor anônimo com certa vaidade. Ele assumia com orgulho que, pelo fato de seu nome não aparecer, ele estaria desde sempre destinado à sombra: sentia pavor de seu nome em evidência. A vaidade que José nutria em relação a seu ofício era tão grande, que chegou a prejudicar seu casamento com Vanda.
O livro lança luzes sobre a questão dos escritores anônimos e os trata como uma classe que se reunia inclusive em congressos internacionais.
Um dado curioso é que, quando escreveu Budapeste, Chico Buarque ainda não conhecia a capital da Hungria. Em entrevista concedida após a publicação do livro, o autor comentou da conversa que teve com um húngaro, o qual lhe confessara que, ao ler algumas páginas do livro, havia tido a impressão de que Chico conhecia intimamente a cidade; mas, em outras passagens, por outro lado, pensava justamente o contrário.
Coincidência digna de nota é que, ao visitar Budapeste depois de ter publicado o livro, Chico descobriu que existe na cidade uma estátua em homenagem ao escritor anônimo!
Outro dado relevante de "Budapeste" é a abordagem do conceito psicanalítico de "duplo", da relação de "ego" e "alter-ego". A dualidade e a ideia de espelho, aliás, se fazem presentes na obra por meio de várias nuances: Rio e Budapeste; Kriska e Vanda; anonimato e notoriedade; ghost-writer e autor. Essa dualidade é explorada de forma muito inteligente inclusive na capa e na quarta capa do livro, e o jogo que elas formam nos leva a indagar: será que o Chico Buarque seria um escritor fantasma do José Costa? Ou, por outro lado, será que José Costa poderia ser considerado um escritor-fantasma do Chico Buarque?
O livro é genial do início ao fim! Recomendo demais sua leitura!
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