Lucas 21/11/2020
Angústia e desnudamento psicológico: Dostoiévski em seu primeiro ato caótico-narrativo
Impulsionado pelo sucesso do seu primeiro livro (Gente Pobre, de 1846), Fiódor Dostoiévski (1821-1881) lançou no mesmo ano O Duplo, seu segundo trabalho narrativo. Dada a impressão excelente que a crítica geral dispensou à sua primeira obra, O Duplo veio com grandes expectativas; os críticos literários, contudo, não reconheceram na obra a mesma qualidade da primeira. E isso afetou o jovem Dostoiévski.
Fundamentalmente, é esta não-aceitação por parte da crítica que torna O Duplo uma obra importante dentro da carreira do escritor russo. É a partir dele que Dostoiévski acaba travando uma "batalha psicológica" contra a crítica especializada, gerando uma relação conturbada ao longo dos anos. Especialmente até 1849, quando o escritor é preso sobe alegações de agitação popular, os críticos deixavam de valorizar seus trabalhos, deixando Dostoiévski num papel de relativo ostracismo junto a literatura russa (papel este sensivelmente alterado quando o escritor volta ao cenário literário na década de 1860, após dez anos de reclusão e serviços militares de caráter punitivo).
Hoje sabe-se, contudo, que O Duplo trouxe uma exacerbação do ainda jovem realismo em voga na literatura da época. O que tinha se visto até então, especialmente com Nikolai Gógol (1809-1852), era um realismo raso, terreno e material, não no sentido de qualidade das obras, mas apenas em termos de enfoque. Talvez o primeiro passo rumo ao aprofundamento desse movimento tenha sido com Gente Pobre, mas no texto desse livro ainda se percebe um pé do autor dentro do realismo tradicional, ocupado por descrever a realidade em seu sentido mais amplo (neste caso de Gente Pobre, a descrição de um casal de vizinhos, Makar Diévuchkin e Varvara Alieksiêievna, em condições sociais paupérrimas. Dostoiévski é aqui reticente, especialmente em comparação às suas grandes obras: alguns traços da regeneração por meio do sofrimento são expostos de forma apenas pontual, sem a contundência que acabou definindo-o como escritor). O Duplo rompeu essa barreira: o realismo é também direcionado para aspectos psicológicos, para a mente dos personagens, utilizando-se de nuances surrealistas.
O que confere a O Duplo essa carga de surrealismo e até mesmo de absurdo é o seu enredo, simplista e restrito a alguns poucos personagens. Basicamente, a história gira em torno de um deles, Yákov Pietróvitch Golyádkin, funcionário público que não vive em condições de miséria (isso afasta as comparações com Gente Pobre; não que a miséria inexista, mas ela está longe de assumir o protagonismo do primeiro livro). Aqui, o leitor terá diante de si um personagem com inúmeras perturbações: o primeiro capítulo da obra simboliza isso. Golyádkin sente um desejo latente por aceitação social, mas ele é claramente antissocial. Detesta as falsidades, as "conversas moles" dos círculos sociais, mas luta para estar nelas. O quadro resultante destas contradições é aquela técnica que viria a ficar batida por Dostoiévski: a exposição da luta do homem, com seus medos, angústias e incompreensões contra um mundo frio, que segmenta e ridiculariza outros indivíduos.
Entretanto, O Duplo não é sobre a luta do protagonista contra o seu mundo, mas contra outro homem, idêntico fisicamente e com personalidade distinta. Inesperada e inexplicavelmente, Golyádkin se vê diante de um sujeito fisicamente igual, homônimo, mas com uma personalidade maquiavélica que vai se revelando aos poucos. O que Dostoiévski vai chamar de "Golyádkin segundo" é uma espécie de parasita, que aumenta em "Golyádkin primeiro" a sensação de incompreensão, de não-pertencimento ao mundo que o rodeia. Este absurdo por si só é renegado a um papel secundário; em primeiro plano, o que fica é a descrição do psicológico de Golyádkin.
Todo esse processo de tentativa de compreensão por parte do protagonista e as consequências nefastas dos atos do seu duploo no meio em que eles viviam correspondem ao cerne do livro, a veia mestra que faz a narrativa circular pelos obscuros meandros da consciência de um indivíduo (muito) perturbado. Dostoiévski, se forem tomadas em conjunto todas as suas obras, tinha uma apego considerável pelo caos. O Duplo traz o primeiro símbolo deste apreço: este cerne mencionado arrasta o protagonista a um cataclismo narrativo, que adquire ares de inevitabilidade desde o fim do primeiro dos treze capítulos da obra. Golyádkin, assim, pode ser visto como um irmão mais velho de muitos outros personagens históricos do autor, tais como Rodion Raskólnikov (Crime e Castigo, 1867), princípe Míchkin (O Idiota, 1869) e Ivan Karamázov (Os Irmãos Karamázov, 1881).
Mas a regeneração, tema também recorrente nas obras posteriores de Dostoiévski, em O Duplo adquire um papel bem diminuto. Não podem ser revelados certos aspectos, mas as obras citadas acima oferecem uma possibilidade mais substancial de regeneração, por meio de filosofias próprias ou, principalmente, através de contemplações religiosas e/ou místicas. Golyádkin em determinados momentos bem isolados até demonstra esta capacidade de contemplação mais pluralizada, mas o que acaba prevalecendo são suas angústias. Não que isso signifique que O Duplo seja ruim ou que destoa negativamente das outras obras do autor, mas por diminuir o papel da regeneração dentro da narrativa acaba fazendo dela um relato bem mais psicológico (sem ser confuso) do que reflexivo ou edificante. Mas a influência da trajetória de Golyádkin nos outros escritos dostoievskianos é relevante, já que, especialmente nas obras citadas, há a presença de "duplos" específicos, personagens que se contradizem entre si, só que de uma forma menos explícita.
O Duplo é um livro curioso, para dizer o mínimo. Gera no leitor emoções contraditórias, fazendo dele um passageiro numa viagem rumo a uma mente perturbada. Nesta viagem, não dá para ignorar o sentimento de identificação com algumas ideias de Golyádkin, não no sentido da perca da razão, mas em suas análises das hipocrisias inerentes às convenções sociais, que ainda hoje perduram. Estas e algumas outras nuances menores podem ajudar a definir Dostoiévski como um visionário, muito a frente do seu tempo: o passar das décadas o legou à perpetuidade literária, fazendo a crítica literária da época ser engolida pelo seu talento inigualável de descrição psicológica dos seus personagens.