Alê Ferreira 06/04/2019
Mas apesar da ponda quebrada o espelho ser a primavera serve
Primavera num espelho partido
Romance de Mario Benedetti, cujo pano de fundo é a ditadura uruguaia, a qual se estendeu de 27 de junho de 1973 a 28 de fevereiro de 1985.
O autor esteve exilado do Uruguai por dez anos em razão de seu posicionamento político, o que lhe rendeu o apelido de escritor do compromisso. Nesse período não cessou sua produção literária, escreveu 9 livros, sendo Primavera num espelho partido o único romance entre eles, fortemente marcado pela experiência do autor, - tanto que ele insere como um dos fragmentos do livro capítulos nominados Exílios, que representam a lembrança e a voz do próprio autor, imprimindo um traço autobiográfico ao livro - foi publicado em 1982.
Apesar da narrativa construída sobre a temática da Ditadura, do exílio, esse romance não pretende colocar em evidência aspectos políticos, pelo menos não delimita fatos e contextos histórico-políticos, antes convida o leitor a visitar os recônditos da vida privada, da intimidade da família abalada pelos efeitos da censura e da repressão da ditadura.
Assim vamos conhecendo Santiago, preso político e sua família, também atingida pelos efeitos da ditadura, vez que exilada na Argentina.
O livro é dividido em seis fragmentos com vozes que se intercalam e, em cada qual o leitor percebe a estória da perspectiva de uma das personagens, como se cada fragmento fosse um pedaço do espelho em que são refletidos seus sentimentos, angustias esperanças.
O espelho fragmentado é a família de Santiago, esfacelada e separada pela repressão,.
Intramuros/extramuros: aqui Santiago comunica-se por meio de cartas. Com alguma limitação imposta pela censura, ele expressa seus sentimentos na prisão e tenta manter por esse fio tênue a ligação com sua família.
Em feridos e contundidos um narrador nos apresenta a Graciela vivendo seus dilemas ao enfrentar a distância forçada do Uruguai, a separação de Santiago, enquanto segue cuidando de sua filha Beatriz.
Os capítulos mais doces do livro revelam toda a inocência de Beatriz, que busca a seu modo entender tudo porque sua família tem passado, assim como se esforça para compreender a figura do seu pai, ao qual ela não conheceu.
Dom Rafael: é narrado pelo pai de Santiago e vai descortinando a intricada relação entre pai e filho durante o exílio, toda a carga emocional de acompanhar ao longe o sofrimento do filho e antever o seu estado por meio do que consegue extrair das entrelinhas de suas cartas, como no trecho em que diz:
"Santiago está bem. Aprendi a ler suas entrelinhas e sei que está mentalmente são. Meu temor era esse. Não que delatasse ou esmorecesse. Isso não. Acho que conheço meu filho. Meu temor era que deslizasse da sanidade para sabe-se lá o que."
Aliás esse é um dos trechos do livro que perpassa pelo sofrimento infligido pela ditadura de forma sutil, como um fio de seda a costurar toda a dor da prisão, da tortura, do exílio.
O outro: trata-se de Rolando, um amigo do casal, inclusive do tempo de militância, com quem Graciela mantém um constante contato.
Exílios: é a voz do próprio Benedetti. Imprime a realidade que viveu a sua obra ficcional.
Assim, em uma trama que vai sendo tecida em retalhos, em fragmentos, que proporcionam ao leitor reunir diversas perspectivas da mesma estória, o autor trata de temas dolorosos e arrasadores com toda a suavidade poética, sem agredir ou causar asco, como seria de se esperar diante do tema do livro.
A narrativa é suave, poética, delicada, especialmente nos capítulos da Beatriz, que quebram a tensão. Ora nos diverte com sua ingenuidade curiosa, ora nos enternece com sua simplicidade.
Portanto esse livro não atende a quem espera um tratado político da época, ou mesmo a exploração do contexto histórico, mas conduz a reflexões mais profundas sobre os efeitos da repressão política na esfera da vida privada, na intimidade e na dinâmica das famílias atingidas pelo regime ditatorial. Lança luz sobre os efeitos dos longos anos de interrupção ao curso da vida normal. Enquanto Santiago está preso, distante, sua família segue o curso de suas vidas. A vida não comporta pausas, não é possível parar em determinado ponto e então recomeçar mais à frente. A vida segue o seu curso, Beatriz segue crescendo, Graciela segue sentindo, Dom Rafael segue envelhecendo, vão tecendo novas relações, no novo país, porém o coração segue acalentando um sonho que foi espedaçado pelo peso da repressão.
Nesse contexto, o final proposto pelo autor, aberto e indefinido, ainda que tenha sugerido ao leitor o que aconteceria, cumpre bem esse papel de lembrar que a vida é construída dia-a-dia, não há como predefinir, predestinar o que será.
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