Yasmin O. 30/12/2023Ele estava só.
Estava abandonado,
feliz, perto do selvagem
coração da vida." James Joyce - epígrafe do livro
Perto do coração selvagem foi minhas última leitura finalizada em 2023. Joana, personagem memorável, um animal não domesticado e necessitado de desfrutar da própria companhia, com lapsos de memória, fragmentada como a escrita da própria Clarice nesse livro. A personagem constata algo que sempre desconfiou, que o essencial e o transcendente se encontra no sentir, nas palavras que ainda não existem, no pensar consigo mesma, no perto do coração selvagem, e não no exterior, no casamento e demais pessoas e convenções sociais, sendo repleta de vida, tanto que a liberdade não era suficiente para ela. Uma personagem amoral, que em mais de um trecho repete que a bondade lhe dá ânsias de vomitar, considerada uma pequena víbora pelos que a rodeiam sem compreendê-la, até mesmo porque emana esse incômodo de ser que sente tão fortemente nos demais.
"A culpa era dele, pensou friamente, à espreita de nova onda de raiva. (...) Sua presença, e mais que sua presença: saber que ele existia, deixavam-na sem liberdade. Só raras vezes agora, numa rápida fugida, conseguia sentir. (...) Ele roubava-lhe tudo, tudo. (...) Agora tinha todo o seu tempo entregue a ele e os minutos que eram seus ela os sentia concedido, partidos em pequenos cubos de gelo que devia engolir rapidamente, antes que derretessem. E fustigando-se para andar à galope: olhe, que esse tempo é liberdade! olhe, pense depressa, olhe, encontre-se depressa, olhe...acabou-se! (...) Depois ele vinha. E ela repousava enfim, com um suspiro, pesadamente. - Mas não queria repousar! - O sangue corria-lhe mais vagarosamente, o ritmo domesticado, como um bicho que adestrou suas passadas para caber dentro da jaula."
"(...) eu não trago paz a ninguém, dou aos outros sempre a mesma taça, faço com que digam: eu estive cego, não era paz o que eu tinha, agora é que a desejo".
"(...) sentia que essa estranha liberdade que fora sua maldição, que nunca a ligara nem a si própria, essa liberdade era o que iluminava sua matéria".
Algo que muito me tocou foi a relação da personagem com o mar, para onde ela sempre tem a necessidade de retornar, há trechos belíssimos relacionados à água, bem como encantei-me com aqueles relacionados à infância, quando Joana já percebia a sua situação de deslocamento em relação aos demais. Clarice me conduziu de volta à infância, para o pátio do recreio, a sala de aula silenciosa, com seus cheiros e sua brisa fresca no prédio de pedras (meu colégio Nossa Senhora da Misericórdia, o mais marcante para mim) , o cheiro da casa à beira-mar, da terra do quintal, a presença-ausência dos meus avós, tudo é muito familiar. Traz a sensação de que o perto do coração selvagem da infância torna-se cada vez mais opaco, e que devemos fazer o possível para retornar a ele.
"(...) Mas eu nunca sei o que fazer das pessoas ou das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde pequena".
As últimas páginas do livro são particularmente maravilhosas e viscerais, uma ode à liberdade, inclusive à liberdade de seguir não compreendendo, um trecho para ficar lendo e relendo. Meu livro está todo grifado, escrito, marcado. Encerrei meu ano literário muito bem.