Lucas 31/07/2018
Erico Verissimo: Um mestre na arte do recorte
O eterno Erico Verissimo (1905-1975) começou a sua carreira literária em 1933, com Clarissa, seu primeiro romance propriamente dito (antes disso já havia escrito Fantoches, um livro de contos infantis). Só por esse fato, o de ser o primeiro livro da linha cronológica da carreira de Verissimo, Clarissa é uma obra especial. Mas o seu enredo contribui para que o leitor esteja diante de um ótimo livro.
Clarissa é uma menina de 13 anos, advinda do interior gaúcho, que vive na Porto Alegre do início da década de 30. Mora na pensão da tia, Eufrasina, mulher forte e disciplinadora. É justamente por meio da pensão que Erico traça uma pintura dos mais diversos tipos da época: há o judeu, o militar antigo, o boêmio, a mulher fútil, o protestante radical e há também Amaro, o coadjuvante da obra. Um personagem misterioso (afinal de contas, "a vida é cheio de mistérios", um mote repetido diversas vezes pela protagonista ao longo da narrativa), Amaro Terra (meio suspeito esse sobrenome, como o fã de O Tempo e O Vento deve perceber) é um bancário escravo de certas convenções e um apaixonado por música e arte. O "conflito" que existe em seu interior é reforçado quando da comparação com a infantilidade e pureza de Clarissa: ambos são personagens totalmente diferentes, mas sofrem do mesmo mal, a solidão.
O núcleo da pensão de Eufrasina se expande geograficamente para a vizinhança e aí o que chama a atenção é Tonico, uma criança paraplégica que vive com a mãe na casa ao lado. O autor usa desse personagem para estimular Clarissa a questionar o sentido da vida: as injustiças, o passar dos anos que faz a criança que existe em nós praticamente desaparecer, o real sentido do amor e por que há tanta futilidade nele, o que nos torna menos humanos e mais adultos... São várias as reflexões que são expostas, sempre com o viés infantil da protagonista, que faz o texto ser leve e ao mesmo tempo poético.
Essa característica é um fator decisivo para a qualidade do livro. Toda a narrativa é permeada por uma leveza, que por mais que seja repetitiva, prende a atenção do leitor e traz a ele uma sensação de torpor permanente. Cheiros, cores, formas, sabores, tudo se torna tangível com a escrita de Verissimo, e fica ainda mais belo porque é relatado sob o ponto de vista de uma criança amável, que sofre os dilemas que cada um vive ou já viveu. Independente de questões contextuais, a empatia e a identificação com Clarissa são profundas e imediatas e muito disso se deve à forma com que ela percebe o mundo vivo e inanimado a sua volta.
Esta associação imediata à protagonista é reforçada pelas suas dificuldades. A adolescência é um período difícil para todos, onde escolhas que determinarão os rumos da vida precisam ser feitas. É um momento onde crenças são quebradas, sonhos alterados, ilusões desfeitas, quando se percebe que o mundo não é um lugar perfeito e que é necessário que se adapte a esta realidade. E Clarissa enfrenta tudo isso longe de casa, sem a influência dos pais por perto, o que torna sua situação melancólica, mesmo com a forte e positiva influência da tia Eufrasina. Ao desenhar os empecilhos íntimos que Clarissa possui ao sair da infantilidade e ir para a adolescência, Erico acaba envolvendo todo tipo de leitor, que de uma forma ou de outra se identifica com os dilemas da protagonista.
Outro traço marcante é a maneira com que o autor trata o tempo, de uma forma fechada. A história se passa na segunda metade de 1932, e assim como em Caminhos Cruzados (de 1935, obra posterior a Clarissa), Erico "recorta" um determinado período de tempo e se ocupa de colocar dentro desse recorte todos os seus personagens, carregados com suas peculiaridades, problemas, preocupações, amores e desamores. Assim, o autor não tem a premissa de "dar um fim" feliz ou não a todos os seus personagens. Fica-se a sensação de uma imensidade de pontas soltas, mas que traz consigo uma percepção bastante original: nem tudo em nossas vidas se resolve por si mesmo. Muitas coisas acontecem e não se resolvem num período de quatro dias ou seis meses; seja no curto ou no longo prazo, o tempo acaba definindo tudo, mas a sua sincronia com os fatos não é um círculo fechado, quase sempre não há finais felizes e muitas vezes nem existe o final... Isso tudo faz de Clarissa um livro natural e humano, que trata de questões cotidianas, sem contos de fada, mas ao mesmo tempo sem a dura e explícita crueza da vida. Aqui, o enfoque maior está na luz, diferente da obra que sucedeu o primeiro romance do autor.
Clarissa acaba por reunir assim todos os traços que marcam a fase "pré O Tempo e O Vento" de Erico Verissimo: livros curtos e belos, que cumprem em cheio seu propósito de entreter, com leveza e poesia implícita. Seu primeiro romance é ainda especial por ter sido a porta de entrada do autor na literatura nacional, que não seria a mesma sem o gaúcho de Cruz Alta. É um exemplo perfeito de livro "bonitinho", que não gera grandes expectativas, mas que as atende com louvor: um olhar infantil para questões adultas num mundo onde dualismos como riqueza x pobreza, amor x ódio, responsabilidade x futilidade são recorrentes.