brunossgodinho 21/03/2020Incursão ao interiorNunca tinha lido nada de Raduan Nassar. Conhecia-o principalmente de nome, após a premiação do Camões e do trabalho acadêmico de um amigo, que o estuda no doutorado. Esperava um calhamaço, mas em 200 páginas o peso do livro-objeto não muda sua densidade literária.
Fiquei impactado, em primeiro lugar, por essa prosa. Não sei se posso dizer que seja experimental, mas para mim era novidade. Uma prosa extremamente poética (na falta de termo melhor, pois o "poético" não necessariamente se restringe à poesia, se seguirmos a raiz grega
poiein cujo sentido é "criação", mas erudição à parte...), que impõe uma variação rítmica: às vezes o texto é frenético, acompanhando o estado tresloucado do narrador; às vezes é calmo, devido ao estado contemplativo de recessão dos episódios de sofrimento.
A leitura pode ser difícil, pois o vocabulário não é dos mais fáceis. Porém, o vocabulário pode ser ignorado ou, talvez melhor, contornado. Os contextos, se lidos com atenção, dão o ritmo e entregam, com intensidade difícil de encontrar em outros textos, a urgência dos momentos descritos. O vocabulário, a meu ver, contribui mais ao estabelecimento desse aspecto quase hermético do texto. O hermetismo, ou seja, o fechamento do texto, esse ato de esconder o que se diz, pode ser relacionado ao período de sua publicação, a ditadura militar. Mas, não é o único fator. A preponderância, suponho, deve estar em dizer uma mesma coisa longamente, analogamente, explorando todos os seus significados, quase como uma exegese dos atos humanos de encontrar beleza (estética) em atos (físicos) horrendos.
No fim,
Lavoura arcaica é uma incursão ao interior: do Brasil, pelo cenário; do ser humano, pelo enredo. Como na alquimia de tempos idos, o texto de Raduan precisa ser cozido, recozido, digerido, decantado, formulado pelo leitor em várias idas e vindas. Como na alquimia, convém ir até o fim, mas sempre vale recomeçar.