amandanogueira 28/09/2010
Balada dos enforcados
Quatro integrantes de uma família são mortos brutalmente, sem nenhum motivo aparente, em Holcomb, uma pequena cidade no interior do Kansas (EUA), no final dos anos 50. O crime poderia ter sido apenas fruto da imaginação de um escritor, mas, longe disso, foi detalhadamente calculado por dois assassinos. Em A Sangue Frio (original: In Cold Blood), a história se desenlaça sobre uma corda bamba que tende ora para a literatura, ora para o jornalismo, no que ficou conhecido como romance de não-ficção, classificação do próprio autor, Truman Capote, para a obra.
A abertura fica por conta de um trecho de “Balada dos Enforcados” (Ballade des pendus), de François Villon. O poema pede pena aos “pobres”, para assim, conseguirem o merecimento de Deus. Logo em seguida, o primeiro capítulo dá início à caracterização profunda das vítimas e de seus amigos próximos, as últimas pessoas a vê-las. Uma longa descrição psicológica e física da família Clutter, em especial da menina Nancy, torna os leitores íntimos a eles, e ainda, familiarizados com a monotonia da vida na pequena cidade. Esse efeito é produzido mediante as descrições sucessivas; as construções de diálogos – provavelmente obtidos por meio de entrevistas com amigos da família –; a seleção e arranjos escolhidos minuciosamente para uma coerência interna e proximidade com a realidade, o que concede credibilidade ao que conta o jornalista. Porém, o retrato subjetivo e emocional, concebido também pela alternância de foco narrativo e pelo fluxo de consciência – que lhes confere profundidade psicológica –, põe em xeque o rigor dos fatos.
Essas mesmas práticas, misturas da literatura e do jornalismo, permanecem presentes a todo tempo durante a narrativa. Ainda nas primeiras páginas, mais dois rapazes são apresentados à parte do que acontecia em Holcomb. Esses dois núcleos de personagens (a família e os rapazes) intercalam a história por meio de cenas curtas separadas por cortes tipicamente cinematográficos. Autor da consagrada noveleta Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s), Capote sabia utilizar bem esse artifício, fazendo com que a leitura se passasse como um filme de duas histórias simultâneas até a identificação de Perry e Dick como os assassinos.
A partir desse ponto, divisor de águas, a história foca nos autores do crime, em suas personalidades e características físicas, assim como em seu relacionamento um com o outro. Porém, é notável um maior destaque a Perry Smith, que teve uma vida sofrida e intolerante. Após introdução dos detetives, os capítulos se dedicam às dificuldades para provar a participação dos suspeitos; às perturbações mais íntimas dos envolvidos, principalmente do responsável pela investigação, Alvin Dewey; assim como ao medo de Richard Hicock e de Perry Smith durante a fuga direção ao México. Com a prisão da dupla, são sutilmente apresentadas possíveis justificativas para o assassinato, ou melhor, existe uma grande tentativa de humanização dos prisioneiros e uma luta para anulação da pena de morte, que, por fim, chega em uma noite de inverno, seis anos depois daquela outra noite sem medidas.
A cena final da vida de Perry Smith dá o último tiro em direção a uma condição digna, mas não passa de mais um artifício que Capote utiliza para escrever a história como gostaria que ela tivesse sido. Após a leitura completa é que voltamos à epigrafe e percebemos que, mais do que um relato de um crime hediondo, a obra pode ser considerada um julgamento, no qual os autores do crime são absolvidos pelo autor do livro.