Craotchky 23/01/2020Provocações rasas sobre narrador(es)AVISO: não trato aqui sequer de uma ínfima parte dos profundos elementos que constituem o livro. Em verdade, este texto se satisfaz tão somente em abordar apenas um elemento: o narrador.
UMA DIVAGAÇÃO TALVEZ INOPORTUNA
Ao longo dos anos sempre me incomodou ver o narrador Bentinho, em Dom Casmurro, ser alvo de tanta desconfiança por parte dos leitores. Aceito que Bentinho não deve ser acreditado completamente, que deve se ter um pé atrás com ele, mas acho que a desconfiança dos leitores é exagerada; talvez ele seja o narrador mais desacreditado da literatura! E qual é o principal (embora não único) motivo para tamanha desconfiança? A narração em primeira pessoa. Ora, quantos e quantos livros são narrados em primeira pessoa e mesmo assim não vemos o narrador ser colocado sob suspeita de tal forma extrema? Penso mesmo que a fama de Bentinho como narrador, tão conhecida, faça com que o(a) leitor(a) de Dom Casmurro já comece o livro condicionado(a) a ver em Bentinho alguém tendencioso (pra não dizer mentiroso). Assim, a partir deste primeiro e principal motivo, torna-se mais fácil achar no texto outros motivos (para muitos, argumentos) para o condenar. Cria-se, de fato, uma forte tendência ao viés de confirmação.
(O parágrafo/preâmbulo acima serve apenas para apontar a relevância que um narrador pode ter na literatura. Não há praticamente tangência entre ele e o resto do texto. Portanto, que fique claro: meu objetivo não será comparar narradores e defender que o narrador de Os irmãos Karamázov é tão suspeito quanto Bentinho.)
O NARRADOR DE OS IRMÃOS KARAMÁZOV
Ao terminar Os irmãos Karamázov, onde encontrei um narrador peculiar, fui até a página de resenhas do livro e, com a ajuda do ctrl+G, procurei o termo "narrador". Em quase 150 resenhas encontradas atualmente, o termo aparece não mais que 15 vezes. Fiquei surpreso com a pequena importância com que este aspecto do livro é tratado. Com isso, resolvi escrever este texto para refletir sobre essa questão, lançar provocações e quem sabe suscitar debates.
O narrador de Os irmãos Karamázov me chamou atenção por ser um tanto incomum. O narrador, logo no princípio, apresenta-se como biógrafo de Aliocha Karamázov e sugere ter certo apreço ao personagem ao declarar que este será o herói de sua história. Diante deste início podemos ao menos supor que o narrador pode não ser imparcial nos relatos sobre seu biografado? (Esta é apenas uma primeira observação e sinceramente acho que estou viajando quanto a ela. Prossigamos.)
Aparentemente o narrador é um habitante da região onde se passou a história narrada. Este narrador não participa ativamente das ações que constituem a história, apenas parece ter acompanhado os eventos como um observador distante, assim como os demais habitantes do lugar. Sua narrativa tem como matéria prima sobretudo o testemunho de sua própria memória (passível de falha?) e os relatos de terceiros (muitas vezes dúbios e/ou vagos) que chegaram ao seu conhecimento. Aqui talvez seja possível colocar a exatidão da narrativa sob suspeita. Vejamos abaixo um trecho do início do livro que demonstra certa incerteza quanto aos fatos ocorridos:
"Enquanto isso, a família de sua esposa soube que a infeliz tinha morrido de repente em um cortiço: de tifo, segundo alguns, ou de fome, segundo outros. Fiódor Pávlovitch estava ébrio quando lhe deram a notícia da morte de sua esposa; contam que ele correu para a rua e começou a gritar, alegremente, com os braços erguidos para o céu: 'Agora, Soberano Senhor, podes despedir em paz o teu servo'. Outros contam que ele chorava como uma criança e dava pena de vê-lo, apesar da rejeição que ele inspirava." (Primeiro capítulo do livro)
Além disso, embora o narrador utilize na maior parte do tempo a terceira pessoa no singular e adote um tom impessoal e praticamente de caráter onisciente, por vezes assume também a primeira pessoa no singular e plural. E embora não seja tão recorrente, de quando em vez emite sua opinião particular, expressa suas próprias reflexões acerca de eventos, além de falar com o leitor diretamente. Sem dúvida isso pode influenciar o(a) leitor(a) a interpretar desta ou daquela maneira (de forma geral o(a) leitor(a) tende a aceitar o viés do narrador). Chega mesmo a antecipar/insinuar que um grande acontecimento será narrado em breve. Na reta final, quando é narrado o julgamento, momento importante da obra, o narrador declara que só dirá aquilo que julga de maior importância e necessário para a compreensão do(a) leitor(a), deixando claro que omitirá partes dos discursos das testemunhas. Veja:
"Assim, não me queiram mal por contar apenas o que mais me impressionou, pessoalmente, assaltando toda a minha memória, dominando todas as minhas lembranças. Posso ter tomado o secundário por principal, posso ter omitido até mesmo os aspectos mais marcantes e indispensáveis..." (Primeira página do capítulo: O dia fatal)
Tudo isso indica a importância de se observar de perto o narrador, não ao nível de descrer de suas palavras, mas para levar em conta suas peculiaridades na hora de interpretar a história. De fato, o resultado aqui é um livro que desafia o(a) leitor(a) ao apresentar muitas interpretações possíveis. De qualquer forma, este narrador, assim como Bentinho (pobre Bentinho), nos sendo a única fonte da história, merece nossa confiança pois, do contrário, a leitura se torna quase impraticável.
Acho que já estou me perdendo, então chega. Fim.