spoiler visualizarStefane 06/01/2024
Leitura que deixa marcas
O som e a fúria, William Faulkner. Tradução de Paulo Henrique Britto
Capítulo 1 – 7 de abril, 1928.
Narrado por Benjy, Benjamin, batizado ao nascer de Maury em homenagem ao tio, o primeiro capítulo da primorosa obra de Faulkner é como montar um quebra-cabeças cujas peças possuem uma desafiadora monocromia.
É através do fluxo de consciência e das memórias que atravessam o presente da narrativa que o leitor é apresentado à família Compson – ou melhor, que o leitor é instigado a tentar montar uma história caoticamente exposta por um homem de 33 anos que vê o mundo como uma criança de 3.
Apesar de ser datado em 1928, onde se lê que é dia do aniversário do narrador, o capítulo se constitui de lembranças da infância de Benjy, explicando, mais tarde, o uso do artigo feminino e masculino para “Quentin” e a própria percepção dual de ausência e presença da irmã favorita do personagem: Caddy, Candance – como insiste a mãe.
Esse talvez seja o capítulo mais difícil de registrar, pois a percepção de Benjamin é de extrema confusão para o leitor, de modo que muito do que é jorrado da consciência do homem é compreendido somente nos capítulos posteriores.
Li que uma forma de visualizar o tempo cronológico na primeira parte do romance é atentar-se aos nomes dos cuidadores de Benjy: Luster cuida dele no presente, T.P na adolescência e Versh na infância. Esses meninos são trabalhadores da família, que no presente já não goza do prestígio das antigas aristocracias do sul.
Se sobressai a violência com que o narrador é tratado e a rejeição que sofre dos pais (Caroline e Jason) e irmãos (Quentin e Jason). É ainda no início que a mãe se mostra uma personagem doentia e amargurada, repetindo sempre para os empregados manterem o filho problemático longe de seus olhos e ouvidos.
Um dos episódios rememorados neste capítulo e que chamou atenção foi a morte da avó, que ocorre ainda na infância do narrador, pelo menos 25 anos antes do presente. Numa primeira leitura, o trecho parece bastante confuso devido às descrições referentes a idade dos irmãos, mas com atenção a cronologia pode ser aprendida.
Benjamin tinha, provavelmente, um autismo severo. Mas, ao contrário do que pensavam todos ao seu redor, compreendia o ocorria com sua família – ao seu modo. Não a toa essa é uma das partes mais significativas de toda a obra.
Capítulo 2 – 9 de junho, 1910.
Meu capítulo favorito!
Aqui, retornamos 18 anos do capítulo anterior. Igualmente desafiador por se tratar de um fluxo de consciência, o narrador agora é Quentin, filho mais velho, que já no início se mostra angustiado com o relógio: não se foge do tempo. Uma das passagens mais marcantes está logo no primeiro parágrafo, em que lemos sobre o relógio dado a Quentin por Jason, o pai:
“Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo” (p. 79)
Acompanhamos um dia da vida do filho pródigo, o mais promissor dos Compson. Para que ele estudasse em Harvard, os pais venderam parte das terras que restaram. Quentin é sempre acompanhado de angustias, seja pela paixão incestuosa, expressa por sua atormentadora preocupação com a virgindade da irmã, ou pelo peso de carregar a responsabilidade de tornar o sobrenome da família algo novamente grandioso.
Ao acordar em seu dormitório, Quentin arruma as malas, escreve algumas cartas e vai até a cidade. No caminho, compra dois ferros de passar que são, a princípio, um mistério. Depois de arrumar confusões com a polícia (ele é preso acusado de raptar uma criança) e de brigar com um colega, compreendemos que a depressão de Quentin faz com que ele não seja capaz de visualizar o futuro e se prenda sombra do passado. Em certo momento, vemos que ele sai de casa nesse dia para se matar. Quentin é um suicida, não suporta o peso do tempo em suas costas.
O capítulo é repleto de sutilezas, mas destaco esse trecho:
“Ele dirá Erguei-vos só o ferro de passar subiria à superfície” (p. 83)
Capítulo 3 – 6 de abril, 1928.
Anterior ao capítulo 1 e dezoito anos após o 2. Quentin já está morto.
O narrador é o cruel Jason, filho que restou para cuidar de D. Caroline.
Jason é um homem pragmático e isso torna a leitura mais tranquila. Neste capítulo, conhecemos mais de Caddy e sua filha de 17 anos, chamada de Quentin em homenagem ao irmão – em certo momento, até pensei que ele fosse o pai da menina.
Caddy casa com um homem rico, mas logo se separa. Ela fica grávida e, ao que parece, sua família não a aceita mais. A mulher dá a luz a Quentin e a deixa aos cuidados de seus pais, pagando uma pensão e impossibilitada de contato posterior com a criança.
Jason pai morre alcoólatra, ficando Jason filho como responsável por cuidar da casa. Ele convence a mãe a rejeitar os cheques enviados pela irmã, afirmando ser um dinheiro sujo. Em certo momento, descobrimos que ele embolsa o dinheiro para si como um modo de pagar a dívida dos pais, tendo em vista que o pouco que restava da família foi destinado a Quentin em Harvard.
Jason é um homem racista e violento, persegue a sobrinha e faz da vida de todos um inferno.
Quentin, filha de Caddy, cresce com uma rebeldia julgada própria de seu sangue.
A menina se vinga do tio roubando o dinheiro que o mesmo guardava em uma caixa no guarda-roupas. O dinheiro roubado pelo mais cruel dos Compson retorna às mãos de sua legitima dona. A menina foge com um homem que trabalhava no circo, trazendo uma comicidade para a situação.
Capítulo 4 – 8 de abril, 1928.
Narrado em terceira pessoa e tendo como plano de fundo o domingo de páscoa, a ira de Jason e a inércia da mãe se fazem presentes com o enfoque em Dilsey, a empregada negra da família. Acompanhamos a busca de Jason pela sobrinha e sua frustração descontada no mundo.
Dilsey leva Benjy para a pregação junto dos filhos e netos. Ela é a única a dar amor ao homem ‘bobo’.
Ressoa em sua cabeça a fala do pastor “eu vi o início e agora eu vejo o fim”.
A história finaliza com o choro desesperado de Benjamin em um episódio de violência de Jason: “havia mais que espanto naquele grito; havia horror; choque, uma agonia sem olhos e sem língua; puro som.”
Apêndice – inserido pelo autor em 1946.
A linhagem da família é apresentada e o destino de todos os personagens é conhecido.
Sabemos aqui que Caddy foi vista com um oficial do exército em Paris através de uma foto encontrada pela bibliotecária da cidade. A mulher procura Jason para mostrar sua irmã e, por puro ressentimento ao vê-la bem, ele nega que seja Caddy.
Benjamin é mandado para o asilo (Jackson) quando a mãe morre e o restante das terras dos Compson é vendido.
Jason se torna um comerciante. Ele não se casa e não tem filhos.
Dilsey e os seus são o que resistem. Sem dúvidas, ela é a personagem mais forte da história.