stelajanuzzi 23/06/2021
Entender o contexto em que foi escrito e lançado esse livro é fundamental para se ter ideia de sua grandiosidade. "As meninas", que começa de maneira extremamente confusa, com o que se assemelha a várias frases desconexas, aos poucos vai se revelando uma obra de arte de extrema criatividade e muito bem construída, mas que exige foco e dedicação do leitor para se permitir entrar no mundo criado por Lygia Fagundes Telles.
O livro conta a história de 3 meninas, que vivem juntas em um pensionato de freiras em plena Ditadura Militar, e que são totalmente diferentes em sua origem, criação, perspectivas de vida e desejos. Ao longo do livro, é possível perceber que entramos dentro da cabeça dessas três, e a história é contada por meio do fluxo de consciência de cada uma, sendo possível a nós leitores, aos poucos, conhecer as personagens através do que se passa no momento em sua mente, e pela definição que uma faz da outra. Ao colocar Lorena, Lia e Ana Clara como personagens centrais dessa narrativa, a autora brilhantemente nos apresenta o contexto de diferentes classes sociais, e todos os anseios e as angústias que essas passavam dentro do período conturbado e violento que foi a ditadura.
Mas é importante não se deixar enganar pela história das três: a meu ver, Lygia objetivava, através do que parecia inofensivo, confuso, e superficial, introduzir ideias e temáticas extremamente polêmicas, e até mesmo censuradas no contexto de lançamento, como liberdade do corpo feminino, pautas militantes do comunismo, tortura que acontecia nos porões da ditadura, abuso sexual, drogas , pautas lgbt's, religião, cirurgias plásticas, e muitas outras. E podemos dizer que a autora alcançou seu objetivo, uma vez que o livro passou pela censura e foi publicado em 1973, em pleno "anos de chumbo", conhecido como o mais violento do regime.
Para além disso, simultaneamente, pode ser entendido que as 3 meninas, cada uma à sua maneira, procuravam formas de se desassociar de algum modo da realidade que as afligia, e para isso se agarravam fortemente em algo: Lorena em seu amor platônico pelo seu ginecologista, um homem casado; Lia em sua luta e esperança em um mundo novo; e Ana Clara no uso excessivo de drogas, sendo ela a que mais claramente se agarrava a outra realidade para não ter que lidar com a dor da sua própria.
Ler essa obra foi uma experiência única e valiosa, em que foi demandado de mim muita atenção e esforço, mas que aos poucos foi crescendo na minha mente, e ficando muito dinâmico ao final. Acompanhar o fluxo de pensamento de 3 jovens meninas foi muito interessante, podendo ter acesso ilimitado a seus pensamentos filosóficos, suas inseguranças, suas ironias e deboches. .
Eu entendo que esse não é um livro para se indicar a qualquer pessoa, mas que é muito importante para nossa literatura e que é sim recomendado a todos que estiverem dispostos a mergulhar nele.