Estela 17/08/2020
O CORCUNDA DE NOTRE DAME | VICTOR HUGO
Em 1831 Notre Dame já havia passado pelo sombrio efeito das revoluções. Depredada e saqueada, a catedral estava em ruínas. Toda história nela escrita e por ela vislumbrada desde sua construção estava sendo esquecida e superada. Paris se reinventava na época de Victor Hugo.
Nessas páginas, capazes de impedir a demolição de uma igreja, ele nos leva ao século XV, mais precisamente ao ano de 1482, e nos coloca diante de toda Paris, com todas as suas ruas, praças e construções, com todos os seus habitantes e todos os seus conflitos. A Paris medieval abriga coroa, clero e burguesia, mas também abriga estrangeiros, mendigos e ladroes. Todos são personagens de Victor Hugo, inclusive a pro?pria Paris e a gótica Notre Dame.
A história narrada é sobre os conflitos de uma gente, coletiva e individualmente. Victor Hugo expõe criticas politicas, sociais e religiosas enquanto tranquilamente nos conta sobre um homem marginalizado cuja aparência lhe determina a essência, uma cigana perseguida e criminalizada, um clérigo com profundos conflitos internos e um poeta que não consegue concretizar sua profissao.
~ Phoebus nem vale a pena ser mencionado
É pesado, profundo e triste, mas a leitura flui ao mesmo tempo diverte. O excêntrico poeta Gringoire e um perfeito alivio cômico, apesar de guardar reflexoes profundas e pertinentes.
Longe de serem bons ou maus, circulam pela Paris personagens complexos, bem construídos e coerentes - com destaque especial a Claude Frollo, que está absolutamente distante de um vilão maniqueísta. Sob o [problemática] romance de Esmalda, há menos romance e mais complexidade do que se supõe.
E, para contar essa historia, alem de estabelecer uma relação de proximidade entre leitor e narrador, a escrita vai ser prolixa e descritiva, se demoraaaando ao narrar cenas e detalhaaaando os ambientes - concedendo capítulos inteiros so para descrever a cidade e a catedral. Victor Hugo se debruça sobre a arquitetura para fazer o leitor se sentir naquela Paris, e consegue, com excelência.
O texto também é recheado de digressões que, como defende o autor, serão apreciadas pelos leitores que buscam, sob o romance, algo além do romance. Há, por exemplo, cuidadosa contextualização histórica, o que graciosamente costura os acontecimentos do livro. E, claro, há filosofia. ISSO MATARÁ AQUILO é um dos melhores e mais belos capítulos de toda a literatura, é aqui que se encontra a icônica reflexão sobre como a arquitetura cede lugar à literatura, e como as letras se tornarão o novo registro da história e do pensamento humano.
~ De sólido que era, torna-se vivaz. Passa da duração à imortalidade. Pode-se demolir uma massa, mas como estripar a ubiquidade? ~
O Corcunda de Notre Dame é menos sobre Quasímodo e mais sobre a catedral, sobre a Paris e sobre sua gente, e ainda mais sobre a construção humana.
Acima disso tudo, é um livro incrível, rico e surpreendentemente corajoso. Vale a pena e merece ser lido, mesmo séculos depois de escrito.