Luccubus 12/01/2021
Emma certamente não é a sua heroína de Jane Austen convencional. Ao começo do livro até pensei que fosse uma reviravolta própria da autora, decidir como uma modernista antes de seu tempo, criar uma narrativa inteiramente focada numa anti-heroína. Fazia de tudo menos torcer por ela. Me cansavam seus gestos, embora fosse fascinante a desenvoltura e honestidade a que era comprometida. Apesar de tudo tinha suas virtudes, mas Emma as valorizava em excesso e tornavam-se vaidades. Falo como uma própria dama de seu tempo, mas digo sem escrúpulos que ali ela só era boa nos momentos em que os outros a guiavam.
O que é muito digno, na verdade, de uma história sobre crescimento, e esse foi o ponto crucial em que a narrativa me prendeu. Apesar de que até um tanto do livro eu estava desinteressada e realmente só queria ver como ela ficaria com quem ficou no final (o que parecia muito claro pela dinâmica dos dois) achava apenas cativante o fato de Emma ser uma jovem dama da sociedade britânica que pretendia não se casar. E nisso fazia de si um instrumento para a "felicidade" alheia, crente em seu enorme ego de que poderia, e de fato já tinha o feito, juntar casais perfeitos como uma verdadeira cupida. Tão tola, tão estúpida, só se impediu.
Mas o interessante desse livro é como ele sai da sua narrativa convencional Austeniana para nos fazer mais de espectadora através do corpo de Emma. Ela só vê, se diverte, mas pouco realmente faz. É alvo de atenções e galanterias, e por força de sua convicção egocêntrica acha que pode persuadir as pessoas ao seu redor de atenderem à sua imaginação quanto às melhores duplas a serem formadas.
Emma vê muita coisa acontecer, e algumas vezes sentimos até uma compaixão por suas raivas, tem muitas, especialmente inveja e aborrecimento. Pensa-se muito superior a todo mundo, muito melhor, mais interessante, mais bonita, talentosa e cativante, e vemos ela se corroer de ciúmes quando Miss Jane Fairfax reaparece em seu pequeno círculo social.
Emma não se mostra para a sociedade, não frequenta grandes salões ou se deslumbra com palácios. Longe disso, fica em casa e cuida do pai de uma saúde debilitada (o que é um tanto duvidável já que o velho é um hipocondríaco dos piores).
Ao começo, logo após "perder" sua governanta para o casamento com um bom homem vizinho deles, Emma tem pouco a fazer e adota socialmente uma menina a quem pode moldar, tamanha é sua presunção. Tornam-se amigas e Emma dirige cada decisão da menina, fazendo-a recusar coisas que a fariam extremamente feliz. Imaginamos ser um próprio gênio do mal.
Mas depois vemos o quanto ela está errada (embora a narrativa já conduza a sempre sabermos que ela esteve errada, por ser obstinada e ferrenha em ideias um tanto fantasiosas da realidade, e diga-se de passagem que sempre a voz de um homem é a voz da razão nessas situações, que no caso é Mr. Knightley, o que me cansa um tanto bom, já que, mesmo ele sendo ponderado e discreto em suas bondades, que são muitas, ainda assim é o "modelo perfeito de masculinidade", o que é um tanto nojento já que ele é tão velho comparado a ela e moldou sua forma de ver o mundo).
Depois a vemos tentar apaixonar-se por um jovem tão dissimulado, esquisito, e embora sempre propenso a vê-la e tratá-la como a melhor, ainda assim tem um que de Jane Austen faltando à sua composição como pretendente perfeito. Não escreve cartas a ela, não se declara, e apesar disso na frente de todo mundo fala demais, e é um tanto maldoso. Ele e Emma juntos parecem mais uma menina hétero com o seu melhor amigo gay numa comédia romântica comum.
Aí que ficamos mais cativados pela personagem que deveria ser a atenção total das histórias de Jane Austen: Jane Fairfax. Como é perfeita, como é compassiva, talentosa, bela, graciosa, comedida, reservada. Tem toda a calma do mundo, e mesmo sendo chata de tão reservada ela é um mistério que prende a atenção. Assemelha-se tanto à protagonista de Razão e Sensibilidade, Ellinor Dashwood, por suas provações do tempo diante de um amor incerto. Ficamos cativados por ela, queremos saber mais. Por que se comporta desse jeito? Teria mesmo agido de forma "imoral" (que no caso é só ter se apaixonado pelo marido da amiga)? O que ela estaria escondendo? E apesar disso Emma não move um dedo para que saibamos mais. Não corre atrás dela a não ser nas últimas páginas do livro, em que já sabemos de quase tudo. Jane Fairfax é aqui a heroína perfeita e que é igualmente trazida com uma inteligência e ótimo senso de humor em autocrítica por Jane Austen ao fazê-la ser vista como chata, irritante, cansativa, sem graça e com segredos e mistérios que nem quem está em seu meio social se importa tanto assim em desvendar. Aqui Austen traz a ironia de suas heroínas com extrema sagacidade. É bom vê-las de outro ângulo.
O que traz o ponto central do livro. São mudanças de ponto de vista. Que atenuam a protagonista, que a tornam mais adulta e mais responsável. Mais competente e menos cega às consequências de seus atos. Vemos ela se cortando um pouco para ter mais sensibilidade.
Emma é um fogo que se não contido traz um incêndio. E eu adoraria vê-la em outras circunstâncias que não na Inglaterra rural do séc. XIX. Adoraria vê-la questionando seu destino, de tão inteligente e tão capaz que é. E justamente nessa inteligência vendo a si mesma enganada sobre tanta coisa e mesmo assim a cada minuto mais sábia e mais imponente.
Deixo só o meu cansaço com relação aos desfechos de Austen. Com certeza esse é o melhor livro dela quanto a isso porque muito impedimentos são colocados, muitas infelicidades e circunstâncias e todas são tratadas muito bem. Tirando Harriet. Não dá pra entender sua mudança de caráter tão rápida que mal foi descrita. Nisso o livro deixa a desejar.