midnightrainz_ 19/05/2024
Para aprender a amar a vida
ALERTA: texto grande escrito em fluxo e que provavelmente não fará sentido, leia por sua conta em risco
queria começar dizendo que esse foi um livro que me pegou de uma forma que eu não esperava - mesmo já sendo habituado com a leitura de Clarice. foi uma narrativa que me fez pensar muito sobre como eu estava vivendo a minha própria vida e querer sentir mais o mundo, prestar mais atenção nos pequenos prazeres, desacelerar. por isso, creio que seja muito importante para o leitor contemporâneo entrar em contato com esse livro, para que ele possa entender que não precisa adiantar as coisas da vida, viva no seu próprio tempo, aprenda a ser você sem medo. inclusive, se fosse para definir uma temática para esse livro, seria esta: a liberdade de ser e de existir. recomendo muito, msm pra qm nunca leu nada da autora - o nível de complexidade desse tá um pouco abaixo do padrão, mais humanizado, mais acessível. a protagonista é uma personagem mt humana, mt fácil de se identificar, pelo menos foi para mim. o par romântico dela pode parecer meio chato no começo mas com o tempo você se acostuma com ele :)
a partir daqui, queria pontuar algumas coisas que eu achei interessantes e que me fazem discordar da autora quando ela afirmou que esse livro é "malfeito".
primeiramente, queria falar sobre o ponto mais interessante (creio eu que o principal), que é a dinâmica dos dois personagens. os dois nutrem essa atração um pelo outro mas logo de cara Ulisses afirma que ele não pode consumar essa união por que Lori não está pronta. isso porque ele a deseja de corpo e alma, e a alma dela ainda não está completamente formada. existe uma certa diferença de maturidade e de visão de mundo que fica bem escancarado na própria construção de personagem: enquanto Lori é uma jovem professora de fundamental, Ulisses é professor de filosofia que dá aulas para graduação (também fica a impressão de que ele é uma pessoa mais velha, mas não lembro se é algo dito ou não).percebemos logo no começo que Lori é uma personagem que sente tudo com muita intensidade, o que fez com que ela aprendesse a se resguardar logo cedo. ela não se conhece, logo se teme, coloca uma máscara social e faz dela sua própria essência. e é essa a jornada pela qual a personagem vai passar, mergulhar no abismo do seu subconsciente e encontrar a Lori que ela resguardou dentro de si própria. Interessante notar aqui a inversão de papéis que Clarice fez na narrativa, Ulisses é o nome romano do nosso clássico herói Odisseu, que foi para a guerra de Tróia e demorou 20 anos para retornar para a casa (10 pra ir, 10 pra voltar) onde sua amada Penelope o aguardava. no romance, quem faz o papel de Penelope é o próprio Ulisses, que aguarda até Lori estar pronta para se entregar a relação deles. por outro lado, Lorelay, nome completo de Lori, é basicamente a iara da mitologia nórdica, é uma espécie de sereia que seduz os homens com seu canto para matá-los afogados - quem exerce esse papel de sedutor é Ulisses, que seduz Lori em direção ao abismo e "mata" a falsa versão dela mesma para que a verdadeira possa nascer. vejo muitas pessoas falarem que ele atua como uma espécie de guia e eu particularmente discordo desse ponto de vista: para mim, ele funciona como uma espécie de porto seguro, ao qual Lori recorre sempre que se sente assustada, desamparada e perdida, então ele a redirecionaria para o caminho certo. mas, algo que ele próprio afirma em um determinado momento, o caminho da aprendizagem em si deve ser percorrido sozinho pela personagem. as vezes ele chega a ser um pouco palestrinha, um pouco "agressivo" - verbalmente, bem de leve -, mas fica claro no romance o quanto ele ama a lori e que tudo isso é um método para auxilia-la em sua jornada. ao mesmo tempo, o próprio Ulisses vai passar por uma aprendizagem também, uma humanização: enquanto ela segue no caminho em busca dela mesma, o qual Ulisses já percorreu, ele vai descer de seu pedestal de conhecimento e aprender a ser mais humilde, para assim também estar pronto para Lori quando forem consumar a união.
outra coisa interessante de se reparar é o título "uma aprendizagem": diferente do aprendizado, que é algo demarcado temporalmente, a aprendizagem é um processo contínuo, não possui começo ou fim. podemos ver essa demarcação pela própria linguagem utilizada na história, que começa com uma vírgula e termina com dois pontos. arrisco ainda a dizer que esse dois pontos possui um significado maior, tendo em vista que pode utilizado para introduzir um aposto, ou seja, uma explicação, só que essa explicação não aparece escrita dentro do livro - ela não existe. é um trecho que fala sobre Deus, então o conceito se torna ainda mais bem amarrado. aliás, Deus é uma temática importante dentro do livro: a busca de Lori por si se desdobra em uma descoberta tanto de Deus quanto do mundo (ou o contrário, a descoberta de Deus e do mundo culminam na busca por ela mesma). contudo, aqui não temos um Deus no sentido cristão, um Deus humanizado de extrema benevolência. na minha concepção, Deus aqui recebe uma divisão bem delimitada: "o Deus", que é retratado como algo que está além da compreensão humana, que não recebe adjetivos por que ele é o próprio conceito, o ser que rege o universo, e a nossa alma que também é uma espécie de Deus, um com adjetivos.
como dito anteriormente, Lori também passa por um processo de descoberta dos prazeres do mundo. viver também é sentir dor, e ninguém gosta da dor, com Lori não é diferente. com isso, ela passou muito tempo trancada dentro dessa caixa e meio que se guiando sem rumo. contudo, quem evita o prazer com medo da dor acaba se doendo o tempo inteiro. assim, com a coragem de Ulisses que ela toma para si, ela começa a se permitir sentir aos poucos um pouco dessa alegria de viver. e é aqui que notamos a evolução da personagem, como no início ela se assusta, o prazer era algo novo a ela - chega um momento inclusive que ela afirma preferir sentir a dor, pois a dor era uma sensação conhecida. mas aos poucos ela se acostuma com o prazer e passa a tomar dozes maiores chegando no ápice do êxtase onde ela afirma sentir um pedaço do paraíso.
existe também um certo contraste, um jogo de duplos, entre dois elementos muito presentes ao longo da narrativa: a água e o fogo. a água é o elemento da purificação, da mudança, e se apresenta de diversas formas, como o mar e a chuva. ao mesmo tempo, é o elemento da catástrofe e da destruição. representa o conflito interno da personagem em seu processo de aprendizagem, os extremos pelos quais ela vai passar enquanto está descobrindo o mundo. por outro lado, o fogo representa o desejo e a paixão, o combustível que fará Lori seguir com sua jornada mesmo quando ela está com medo.
outra coisa muito interessante, que eu não sei se foi proposital ou não então não me estenderei muito nesse tópico, é o fato de que, antes de Ulisses, Lori se relacionou com 5 outros caras, da mesma forma que Clarice escreveu 5 romances antes desse. posso ter viajado muito, mas achei isso no mínimo curioso.
posso garantir que deixei muita coisa passar, muitas simbologias que a Clarice usa na história - tipo o taxi - e isso me faz crer que esse livro crescerá numa futura releitura. mas, enquanto ela não acontece, fica a recomendação :)
ps: bom deixar claro que, apesar de ter um romance no meio, o foco é a protagonista. não existem personagens importantes além dos dois, um ou outro é mencionado de vez em quando, mas a personagem passa a maior parte do tempo sozinha refletindo com ela mesma. bom deixar esse aviso para qm tá buscando romance água com açúcar ou algo do tipo:)