jota 09/01/2017Barra pesada e suja, muito suja...Depois de Trilogia Suja de Havana e Animal Tropical com este O Rei de Havana penso que agora conheço muito melhor aquilo que alguns críticos chamaram de "realismo sujo", a literatura de PJG. Dela participam não apenas os cubanos; ratos, baratas, piolhos, cães sarnentos, urina, fezes, sêmen e outros fluidos e odores corporais são igualmente parte importante das histórias que ele escreve.
O rei de Havana não é Fidel (o dono de toda a ilha e seus habitantes, até mesmo de várias pessoas residindo no Brasil); El Rey de La Habana (título original) é sobre Rey, ou Reynaldo, um garoto órfão e desajustado, com capacidade para transformar num inferno qualquer instituição destinada a recuperar menores infratores. Não que fosse dono de um intelecto invejável, muito pelo contrário: aprendeu tudo nas ruas, detestava escola, mal sabia ler e escrever aos treze anos.
Fugitivo de um estabelecimento correcional, Rey perambula por alguns sítios antes de voltar definitivamente para a capital: vivia em Havana até a tragédia que acabou com sua família. Ele não tem futuro nem busca um; vive por viver: premido pela necessidade faz de tudo um pouco, se vira, como faziam quase todos os cubanos no auge da crise por que passou o país na década de 1990 com o esfacelamento da antiga URSS, que mantinha Cuba como ponto estratégico de sua política anti-EUA.
Rey rouba, recolhe restos do lixo para comer, pede esmolas, trabalha alguns dias aqui e ali para poder se sustentar, faz sexo por prazer e também por comida, bebida e drogas, zanza pela cidade sem destino, dorme nas ruas, em prédios arruinados, defeca em qualquer lugar e transa como um animal, inclusive com um travesti e mulheres bem mais velhas do que ele. Encara a miséria como um fardo insuportável, a vida como uma inutilidade, e mais de uma vez pensa em acabar com a sua, totalmente sem sentido como a de muitos que cruzam seu caminho.
Se o livro é ou não um retrato de Cuba e dos cubanos daqueles anos de penúria não importa. Ainda que não seja um personagem com quem se possa identificar ou simpatizar, Rey é humano a seu modo - ao modo de Gutiérrez, seria melhor escrever -, mas poderia ser encontrado em muitas ruas de grandes cidades mundo afora. Se é um personagem exagerado (outros igualmente são, como Magda e Sandra) ou vive situações extremadas, convém lembrar que a literatura não tem compromissos com a realidade, não tem de fazer um retrato fiel da sociedade ou de seus indivíduos feito uma obra de sociologia. No entanto O Rei de Havana não se passa em Marte, mas aqui mesmo na América Latina.
(Engraçado é que houve momentos em que os tormentos por que passava Rey evocaram em mim os de outro personagem, de outro livro, de uma sociedade e de um tempo completamente diversos, o vagabundo famélico da obra do norueguês Knut Hamsun escrita em 1890, Fome. Enquanto lemos nossa mente viaja...)
Mesmo com seu realismo sujo, PJG parece ter mais credibilidade para falar de seu país do que as autoridades cubanas, expoentes de uma das ditaduras mais longas da História e responsáveis pelo lastimável estado que o país atingiu então - porém sempre colocando a culpa de tudo no bloqueio comercial imposto a Cuba pelos EUA. Nesse sentido, Rey e os outros são também vítimas do desgoverno cubano e não apenas vagabundos ou putos que pensam o tempo todo em sexo, rum, charutos ou drogas, o que efetivamente fazem. Pedro Juan Gutiérrez faz literatura e através dela também escreve a crônica amarga e suja da sociedade de seu tempo.
Lido entre 27 e 31/12/2016. Minha avaliação: 4,3.