Lucas 03/05/2019
Terra, capital e trabalho como instrumentos de conscientização social que transcendem tempo e fronteiras
John Steinbeck (1902-1968) foi um dos maiores escritores norte-americanos de todos os tempos. A afirmação é pomposa e desafiadora, ainda mais se for feita no Brasil, que possui certa dificuldade em transpor para a língua pátria importantes obras da literatura dos Estados Unidos (prova disso é um certo "abandono" com que estas obras são tratadas por editoras importantes daqui). Mas, em se tratando de literatura nativa norte-americana, esta mesma afirmação é indiscutível: Steinbeck é eterno e plenamente difundido nos meios educacionais e acadêmicos dos Estados Unidos e, por mais que haja apelo ao seu nome em terras tupiniquins, seu reconhecimento está longe de ilustrar a relevância desse autor para a literatura universal.
Natural da Califórnia, estado norte-americano situado ao extremo oeste do país (e o estado mais populoso dos EUA), Steinbeck usou da sua terra como fonte para a maioria dos seus romances, permeados por constantes críticas sociais e uma capacidade imensurável de ensinar e trazer reflexão. Tanto a Califórnia quanto esse viés crítico correspondem, juntos, ao pano de fundo daquela que é considerada a sua obra-prima: o romance As Vinhas da Ira, lançado em 1939.
As Vinhas da Ira é, decididamente, um livro forte, capaz de transcender gerações com o que narra. E todos esses atributos são explicados pelo contexto econômico e social da época em que a narrativa se passa, no início dos anos 30.
O mundo, e especialmente os Estados Unidos, passaram de forma nebulosa por essa época da história, que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. A verdade é que, em parte, a ebulição política global que gerou o conflito foi provocada pela Quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, dando início à chamada Grande Depressão, o mais contínuo momento de recessões mundiais, que se estendeu até o fim da Segunda Guerra. Tal fato gerou um colapso de ordem econômica e social, com uma profunda e abrupta desvalorização de preços e proliferação da miséria.
Dentro disso, Steinbeck não dirige seu olhar de narrador aos grandes centros norte-americanos, que sofreram em demasia os efeitos da crise (as diversas fotos em preto e branco retratando filas imensas em busca de emprego e comida em Nova York chocam até hoje). Ele expande a questão para o interior dos Estados Unidos, realçando a proliferação da miséria em regiões agrícolas do estado de Oklahoma, situado no centro-sul norte-americano.
Oklahoma fica quase que inteiramente dentro das Grandes Planícies (uma faixa de terras com baixa altitude que se estende verticalmente até o Canadá), e que é conhecida como a região mais seca dos Estados Unidos. Com um clima semiárido, ele fica cercado à oeste pelas Montanhas Rochosas, vasta cordilheira que se estende quase que paralelamente às Grandes Planícies e que impedem a chegada da umidade do Oceano Pacífico. A região, de grande tradição agrícola, sofreu na mesma época da grande crise econômica o maior desastre natural provocado pelo homem no território norte-americano: o chamado dust bowl (taça de pó), intensas ondas de tempestade de areia ocorridas diversas vezes durante a década de 30 (cada uma dessas tempestades durava dias, onde não se via a luz do sol e causando a destruição de plantações e estruturas agrícolas). Tal fenômeno ocorreu em função do mau manuseio da terra: uma expansão desenfreada de plantações de milho, trigo, cevada e outras, sem rotação de culturas, causou um "afrouxamento" da superfície do solo, que o fez perder substância e se tornar arenoso.
Tem-se, assim, a contextualização histórica e geográfica que abriga a excelente ficção com ares de realidade retratada n'As Vinhas da Ira. Steinbeck conta a história da família Joad, que, assim como milhares de outros cidadãos do interior de Oklahoma, se veem obrigados a sair de suas terras em função das secas e do não pagamento de dívidas a seus respectivos arrendadores. Nesse sentido, a Califórnia, situada a pouco mais de três mil quilômetros a oeste se apresenta aos honestos e ingênuos agricultores como a "terra prometida" que, com sua variabilidade de culturas e regime mais regular de chuvas, iria os conduzir a tão sonhada independência financeira.
O autor usa de uma técnica narrativa interessante, que se faz presente em todo o livro: vai alternando os capítulos (que em sua maioria são bem extensos) entre monólogos que traçam um panorama perfeito entre tecnologia x mão de obra (o advento dos tratores é notório nessa análise), a questão do preconceito contra os menos instruídos, a selvageria capitalista com que os menos favorecidos são tratados, a expansão das desigualdades agrárias, a relação forte e onipresente entre terra, capital e trabalho, etc.; e a trajetória dos Joad em si, saindo de Oklahoma e migrando para a Califórnia (utilizando a legendária rodovia Route 66, referenciada em músicas e filmes ao longo do século XX) com um velho caminhão, bagagens de quinquilharias e, acima de tudo, muitos sonhos, que parecem sucumbir aos aspectos nefastos surgidos a partir do ambiente de dificuldades da época. A questão do êxodo rural, problema tão comum no Brasil da segunda metade do século XX (os chamados "paus de arara", que traziam nordestinos às regiões mais ricas do país traçam um paralelo nítido às migrações norte-americanas) aproximam ainda mais a narrativa dos Joad de qualquer família brasileira que tenha passado por tais desesperanças.
Partindo da saga dos Joad, que ganha caráter de epopeia, o autor descreve com perfeição a realidade agrícola da Califórnia na época: imensas propriedades, na maioria de frutas, que colocavam em posição de total submissão quem chegava em busca de trabalho e de uma vida melhor. Esta ilustração pode também ser associada ao Brasil, onde a questão agrária sempre foi alvo de polêmicas e discussões. Sem que se politize este tópico, é necessário que o leitor compreenda a função social da terra, cuja exploração deve prover as necessidades dos trabalhadores e suas famílias, gerando alguma produção sem agressão ao meio ambiente. O direito à propriedade é, de fato, algo preponderante, mas deve ser estendido a todos. A reforma agrária é sempre um mecanismo de diminuição das desigualdades sociais e, como tal, deve possibilitar inclusão social e melhorias na eficiência da exploração da terra como recurso primordial da agricultura familiar.
Sob o ponto de vista mais específico da ficção, não há muito o que ser dito. Os Joad são uma típica família baseada nestes moldes da agricultura familiar e, como tal, estavam sufocados pelo latifundiário que não tinha grande preocupação com o bem-estar da sociedade em que se inseria (não muito diferente de vários grandes proprietários de terra do Brasil, por exemplo). Diante de um cenário que vai se dramatizando aos poucos, a trajetória da família passa por inúmeras dificuldades: o leitor sofre com os Joad as agruras e preconceitos que pessoas de baixa escolaridade e de origens diferentes passam em busca de dignidade, mas com uma humildade honesta e inocente, que emociona e faz esse mesmo leitor lembrar e associar, se for o caso, a história dos Joad com o sensacional Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos (1892-1953), cuja narrativa, mais crua e direta, possui relação com As Vinhas da Ira, especialmente no que tange a este aspecto social, de isolamento de determinado grupo de personagens.
O grande baluarte da obra não é a ficção em si (que é excelente), mas o que a narrativa traz de conscientização social e o impacto terrível que as desigualdades, sejam elas econômicas ou sociais, causam. Elementos como êxodo rural, latifúndio, monocultura, entre outros, ainda hoje são causadores de problemas sociais mais amplos, e se não há uma preocupação governamental na promoção da inclusão social, a tendência histórica é a de que estes mesmos problemas se proliferem exponencialmente. A inserção intermitente a um mundo que gira em torno de lucro e trabalho não deve servir como cortina de fumaça para o verdadeiro desafio de tornar uma sociedade menos individualista, que é o oferecimento de oportunidades iguais para todos, sem distinções de nenhuma natureza.
"[Steinbeck] não era talhado para fazer meramente entretenimento. Ao contrário, os assuntos por ele escolhidos são sérios e denunciativos, como as experiências amargas nas plantações de frutas e algodão da Califórnia". Tal declaração, feita pela Academia de Letras da Suécia quando da entrega do Prêmio Nobel de Literatura ao escritor em 1962, traduz bem o que As Vinhas da Ira é: um romance que transcende a literatura, servindo como um tratado de conscientização social, simbolizado pela dramática saga dos Joad. Essa transcendência não é apenas narrativa: é temporal, pois é e sempre será uma denúncia à covardia da dominância com que os menos favorecidos são por vezes tratados; e também é geográfica, já que é forte a relação da estrutura social agrícola representada no romance com a realidade brasileira de não muitos anos atrás.