MBressan 05/10/2023
A memória é uma vasta ferida
Primeiro livro de Chico que li e a conclusão continua sendo a mesma em relação às suas músicas: gênio.
Chico Buarque tem a perspicácia de entrelaçar o público e o privado; o íntimo e o social; a história pessoal e a história do Brasil.
Eulálio, um senhor centenário, é capaz de nos mostrar a realidade do envelhecer, e nos traz a reflexão: não importa quem você tenha sido, o corpo envelhece e sofre das mesmas mazelas que qualquer outro.
A confusão das memórias do personagem acabam gerando confusão em nós mesmos ao longo da leitura, afinal, sou eu ou o próprio Eulálio que está se confundindo?
Cheguei a pensar: e se toda essa história sobre família importante, Rainha Elizabeth, senador, abolição, for apenas uma distorção gerada pela demência? Pois bem, a história do Brasil, às vezes, é realmente tão absurda que soaria melhor se fosse apenas uma ideia fantasiosa (e de mau gosto).
Como ignorar, ainda, a sensação a la "Capitu" quando se trata de Matilde: traiu ou não traiu?
Por todo o livro, somos tomados por um conjunto de sentimentos entre a repugnância pelo passado e a empatia pelo presente de Eulálio (e da sociedade).
"bem antes da doença e da velhice, talvez minha vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz."
"memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas"
"seria até cômico, eu aqui, todo cagado nas fraldas, dizer a vocês que tive berço"
"os baques me seriam muito dolorosos se eu já não estivesse caído"
"as pessoas não se dão o trabalho de escutar um velho, e é por isso que há tantos velhos embatucados por aí, o olhar perdido, numa espécie de país estrangeiro"
"são tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora."