Monique 11/04/2010SurpreendenteNunca fui fã do Chico, nem de suas músicas, nem de seus romances. Cheguei a Leite Derramado por uma indicação e me surpreendi com o que vi.
O livro é a narrativa das memórias de um velho centenário. Eulálio Montenegro D'Assumpção, nascido em 1907, vem uma linhagem antiga de figurões importantes da elite brasileira, que remonta a príncipes europeus. O pai havia sido um senador da República Velha e bastava dizer seu nome para que as portas da política carioca e brasileira se abrissem aos seus. Eulálio nasceu e cresceu em meio a isso, frequentando a alta sociedade e, mesmo que sem o brilho de Eulálio Pai, se valeu muito dos privilégios herdados da importância política familiar. Sua mãe falava francês em casa e estava acostumada a promover banquetes no palacete da família.
Entretanto, quando conhecemos Eulálio, ele já está velho, deitado num leito de hospital e se queixando de dores. O livro é narrado todo em primeira pessoa por ele, conforme conta a quem quiser ouvir os episódios de sua infância e idade adulta. Tudo é descrito como a memória de um velho delirante, que se lembra claramente dos episódios passados há mais de 80 anos, mas por vezes não reconhece nem os próprios netos. Pelo mesmo motivo, as memórias não são lineares, como se elas se atropelassem na mente do velho, que ao falar da mulher Matilde, por vezes confunde episódios reais com desejos não realizados, por exemplo de que ela voltasse para casa um dia.
As informações são apresentadas em capítulos curtos, de forma concisa, alternando presente e passado na mesma ideia, sendo que às vezes seja preciso avançar páginas e páginas até entendermos exatamente do que o narrador falava lá atrás. A memória é cheia de buracos e, conforme vamos avançando, alguns deles vão sendo preenchidos, mas outros são simplesmente substituídos por novas informações que tornam tudo ainda mais confuso. É o caso de Matilde, a esposa de Eulálio. A personagem aparece durante todo o romance, mas a verdade é que até o final as informações a respeito dela são bastante contraditórias.
Outra parte legal é rumo que toma a descendência de Eulálio. Conforme o narrador conta a saga de sua família, caminhamos pela decadência dos Assumpção, que de moradores de palacetes perdem um pouco de cada vez até chegar a um barraco de um cômodo só em uma favela carioca qualquer e ao leito de hospital público.
O livro é realmente MUITO BOM. O que tem de melhor é o estilo da narrativa guiada pela inconstância do velho e pela sua memória imperfeita e contraditória. A ironia de seu discurso também é algo muito refinado, o que me fez dar mais de um risinho ao longo da leitura. Para não falar da própria história da família em si, que deixaria a pobre mãe de Eulálio xingando em francês se tivesse vivido para ver. Foi uma leitura surpreendente, que conquista o leitor de mansinho, que é confusa demais em alguns momentos, mas cheia de subentendidos em outros.
Vale super a pena.
Texto completo: http://oaragornehlindo.blogspot.com/2010/03/review-leite-derramado-chico-buarque.html