spoiler visualizarLucasMiguel 24/01/2022
Nabokov nunca teve medo de inovar na linguagem, na narrativa. Neste romance, o quarto publicado, o autor busca, por meio de espelhamentos, criar uma metáfora para a própria narrativa, para a literatura, e cria uma afinidade ímpar com o leitor.
Após sofrer um ataque furioso do marido ciumento de sua amante, o narrador (um russo residente em Berlim) decide cometer suicídio pois não encontra, principalmente após a humilhação sofrida, uma razão minimamente razoável para sua existência.
Ao disparar contra o próprio coração, o narrador percebe que sua consciência não pereceu após a morte do corpo físico, conseguindo criar realidades dentro de sua mente que acabam por se mostrar projeções, ou espelhamentos de suas próprias experiências e sua própria personalidade.
Outro elemento frequente nas obras do autor que retorna nesta obra, é a presença do narrador não confiável: não podemos assumir como verdadeiro o que conta o narrador, notadamente após a revelação de que o mentiroso compulsivo Smurov é o próprio narrador que se via em terceira pessoa em suas construções mentais.
A propósito, esta inversão acaba por criar um duplo narrativo – um que narra e um que é narrado por este, mesmo que seja mantida a unidade do personagem principal -, parece apontar para a verdadeira intenção do romance: criar uma grande metáfora de si mesmo.
O próprio nome do romance escancara esta perspectiva. O olho é a forma metafórica de acompanhar a narrativa que ocorre, ordinariamente, na primeira ou na terceira pessoa, a depender se o autor prefere um vislumbre subjetivo e pessoal ou objetivo e impessoal dos fatos.
O romance de Nabokov bifurca a forma narrativa em duas após a morte do narrador, não sendo possível inferir se o romance é narrado por Smurov ou sobre ele, visto que acaba sendo ambos ao mesmo tempo.
Ao deslocar e cindir a forma com que o narrador apresenta a trama, o personagem principal observa a realidade e é observado por ele mesmo, sendo este movimento revelado apenas ao final do livro, o que gera um estranhamento ao leitor e resulta em um processo mental regressivo para juntar as peças e produzir a reunificação do personagem cindido. É neste ponto que há a afinidade do escritor com o leitor, fazendo deste uma espécie de coautor da obra.
Smurov, na medida em que é o narrador e o personagem principal é, a um só tempo, também personagem secundário observado pelo narrador como se este fosse um “espião”. Não à toa, Smurov é acusado por um dos personagens de ser um espião soviético.
A complexificação narrativa se intensifica pelo fato de que, após cometer suicídio – caso seja esta informação verídica -, toda a realidade enxergada pelo personagem principal não passa de projeção de sua própria mente. Desta forma, é ele quem ‘inventa’ as manifestações dos demais personagens que interagem com ele. Ou seja, é ele quem cria a narrativa dele mesmo.
Caso toda narração insólita do romance seja apenas uma mentira inventada pelo mitômato Smurov, poderíamos dobrar a ficção sobre ela mesma porque, de fato, toda obra de ficção é uma mentira criada por alguém e, desta maneira, haveria uma aglutinação do narrador e do autor. No caso do romance, o narrador busca a si mesmo obsessivamente. Pode-se, concluir, portanto, que o ato da escrita é, sempre, uma busca por autoconhecimento.
Para quem conhece um pouco da biografia de Nabokov irá identificar elementos coincidentes entre ela e o romance, como o fato de Smurov ser migrante russo na Alemanha, de estar em fuga do regime soviético, etc, fortalecendo a tese de que haveria uma aglutinação Smurov/Nabokov, em uma espécie de retorno à unidade buscada.
Além disso, o ato da escrita é, também, a busca pela perpetuação, pela imortalidade. Este é outro ponto onde a narrativa dobra-se sobre si mesmo na medida em que o personagem principal, duplo do autor, mantém sua mente viva após suicidar-se, e visto que o personagem Roman Bogdanovich (outra projeção de Smurov) escreve um diário para manter viva a sensação de autopreservação, hábito este que se tornou uma obsessão para Smurov, personagem e ficcionista de sua própria vida que, ao conta-la, manteve-se vivo mesmo após a morte de seu criador e alter ego Vladimir Nabokov.
Outro autor que trabalhava com a complexificação da personalidade foi o argentino Jorge Luis Borges que, em seu conto “as ruínas circulares”, criou uma realidade em que o personagem principal é uma projeção imaginada de outro, assim como este é projeção imaginada pelo autor e este seria uma projeção de Algo?
Nabokov é um dos meus escritores preferidos e se tem algo que posso dizer com segurança é que, pode-se gostar ou desgostar de seus textos, mas é impossível quedar-se indiferentes a eles.