spoiler visualizarMurilo.Alan 23/12/2020
Resenha - O Caso dos Exploradores de Cavernas
O livro “O caso dos exploradores de caverna”, de Lon L. Fuller, introduz uma reflexão aos leitores, em especial os ingressantes no curso de Direito, a respeito dos limites e visões acerca da Justiça. Através da exposição de um caso controverso e polêmico ocorrido no Condado de Stowfield, o autor propõe que os estudantes analisem diferentes pontos de vista sobre o caso, apresentados na forma de votos de cinco Ministros da Suprema Corte de Newgarth.
Com efeito, a narrativa discorre sobre um grupo de pesquisadores que acabam confinados em uma caverna, após um desmoronamento de terra que bloqueou a única saída disponível. Após vinte longos dias isolados do mundo, com aguda carestia de necessidades básicas, os indivíduos acordam em sacrificar um deles para que seja entregue como alimento aos demais.
Apesar da desistência de um deles no decorrer do processo, os pesquisadores tentam a sorte, através do lançamento de dados. E, por irônica coincidência, aquele que desistira da participação é justamente o escolhido para a morte. O canibalismo, embora controverso, é o que garante a sobrevivência dos demais até o socorro alcançá-los.
Depois de socorridos, os sobreviventes são encaminhados aos devidos serviços de saúde e, ao se constatar sua capacidade, são processados por homicídio. Contando com ululante repercussão nacional, o caso alcança a mais alta corte de Newgarth, que deverá decidir se confirma ou não a decisão condenatória à pena capital, sentenciada em primeira instância.
A partir de então, o leitor é apresentado a cinco diferentes pontos de vista sobre o ocorrido, navegando pelos mais diferentes argumentos, fundamentados em juspositivismo, jusnaturalismo ou senso comum.
Preliminarmente, a obra apresenta o voto emitido pelo presidente da Corte Suprema de Newgarth, Truepenny, C. J. Para contextualizar o leitor, o voto traz uma explicação detalhada do caso, a partir do qual é emitida a opinião. O voto em tela é favorável à condenação. Embora seja simpático à causa dos pesquisadores, o Presidente concorda com a primeira instância sob o argumento da legalidade: os pesquisadores subtraíram a vida do seu semelhante e, conforme a legislação vigente, devem se submeter à pena capital.
Entretanto, o voto do Presidente contém um apelo ao Poder Executivo para que o Presidente conceda um indulto de pena aos pesquisadores. Em outras palavras, o magistrado votou pela legalidade, mas não concorda com a execução e, para não ferir a legislação, atribuiu ao Executivo o perdão da pena aos réus.
Destarte, é interessante problematizar a atitude do magistrado. Apesar da hodierna teoria dos freios e contrapesos, que constitui a versão temperada do modelo de Estado de Montesquieu, permitir a intervenção pontual de um poder em outro, não é cabível que a Suprema Corte atue prevendo essa situação. Espera-se que a mais alta Corte da Nação seja capaz de decidir de forma independente, sumária, fundamentada e corajosa qualquer lide, garantindo, inclusive, a credibilidade do Judiciário. A partir do momento que o magistrado defende que o Executivo anule a decisão da Corte, esse atua de forma perniciosa às premissas do Judiciário, com covardia e intimidação.
A seguir, os leitores conhecem o voto do Ministro Foster, J. Perfazendo a mais poética das opiniões, o magistrado faz uso do conceito de direito natural, remontando ao pensamento hobbesiano. Tendo em vista que o contrato social de Hobbes considera o direito à preservação da vida como supremo, a atitude homicida dos pesquisadores é justificável diante de um contexto que foge à normalidade. Expostos a um processo de eminente inanição, sem perspectivas de socorro em curto prazo, os homens saíram do controle, coadunando com atitudes diversas das que teriam no convívio social.
Além disso, o Ministro defende que um ambiente localizado abaixo de 500 metros de sólida rocha não está na jurisdição das normas postas na superfície. Um cenário novo, totalmente inóspito, enseja a criação de normas específicas e diferenciadas. Todo esse conjunto de fatores proporciona a opinião consolidada de Foster, contrária à condenação dos réus.
Embora seja plenamente compreensível a penosidade do cenário em que os réus estavam imersos, não é interessante para a estabilidade do sistema que a jurisdição tenha limites à sua competência. Ao admitir que os seres humanos sejam inimputáveis em situações de estado natural, cria-se um perigoso precedente para outros casos semelhantes, inclusive incentivando atitudes desumanas, diante de cenários hostis.
Em prosseguimento, os leitores presenciarão o ineditismo do Ministro Tatting, J. Surpreendentemente, o magistrado se coloca como incapaz para participar do debate e perfazer um voto, perante questões emocionais que permeiam sua mente naquele momento.
Concomitante à concordância com o Ministro Foster em suas colocações, o Ministro Tatting apresenta uma série de questionamentos a essa teoria, que segundo ele, não é capaz de explicar as atitudes dos pesquisadores em sua totalidade. Há muitas lacunas presentes no voto do Ministro Foster, como por exemplo, o momento em que aconteceria a transição entre o direito positivado e o direito natural. Todas essas questões colocam em cheque o pleno convencimento de Tatting sobre o voto do seu par. Porém, esses questionamentos também não são suficientes para convencê-lo a favor da pena capital. Permeado por dúvidas, o magistrado opta por se abster e não emite um parecer conclusivo, num fato provavelmente inédito numa Suprema Corte.
É imperioso observar que a postura do magistrado é controversa e amplamente discutível. Afinal, há duas óticas possíveis para o fato em tela. Se o magistrado não está apto a emitir um parecer, por carecer de certeza, é recomendável que não o faça, objetivando não cometer injustiças. Todavia, não é admissível que um Ministro da Suprema Corte não se considere apto a emitir julgamentos, pois se espera que a Suprema Corte seja capaz de solucionar qualquer contenda.
Configurando a mais concisa e sumária das decisões, o Ministro Keen, J. é taxativamente a favor da condenação capital aos réus. Opinando de maneira incisiva e categoricamente legalista, o magistrado entende que o crime foi cometido, independente das razões que o cercam, e deve ser sancionado conforme a jurisprudência orienta. Não há que se falar em direito natural, injustiças, ou clemência do Poder Executivo.
Doravante, é profundamente crítico aos juízes que atuam com medo da opinião pública e acredita que uma decisão contrária à opinião popular, mas fundamentada juridicamente, é muito mais adequada e salutar do que aquela que, por covardia ou complacência, concorda com o senso comum.
Percebe-se, então, o alto grau juspositivista de sua decisão, pois, embora coerente, reduz-se à norma posta, ignorando os fatores externos que eivam as atitudes dos réus. Ao atuar estritamente dentro da legalidade, configura o voto menos passível de ataques dos pares da Corte.
Finalmente, o leitor conhece a opinião do Ministro Handy, J. De encontro à opinião do Ministro Keen, o magistrado apresenta dados coletados em pesquisas de opinião para fundamentar que seu voto deve seguir o senso comum. Na sua visão, a atuação do Judiciário deve estar em consonância com a opinião popular, tendo em vista que, em tese, é o povo quem faz as leis, na figura dos seus representantes.
Desse modo, é evidente que essa opinião é a mais polêmica de todas. Afinal, reduzir o Judiciário ao senso comum propugna um amplo leque de possibilidades de ocorrência de erros, injustiças e tribunais de exceção. Mas, para o magistrado, é função do Judiciário buscar se aproximar do homem comum e votar a favor da extinção da pena em questão é o primeiro passo.
Diante do resultado de dois votos favoráveis e dois votos contrários, a pena capital, sentenciada pela primeira instância, foi mantida pela Suprema Corte. Assim sendo, os réus foram executados.
O principal objetivo da obra, portanto, é levar o leitor a uma profunda reflexão sobre os limites da atuação do Judiciário diante de lides adversas e extremas. O estudante deve questionar até que ponto o Judiciário pode ser exposto às pressões externas, bem como cedê-las.
Todas as questões que fogem à naturalidade culminam em sentimentos intensos no indivíduo. Seja no assassinato cometido num momento de desespero, seja no julgamento deste. Todavia, o magistrado deve manter a temperança nesses momentos, e analisar de maneira ponderada como aplicar a lei posta nos mais diversos cenários.
Além disso, a concepção do direito à preservação da vida é muito enraizada no homem, de tal sorte que é inconcebível às categorias do conhecimento hodiernas que se invistam vultosas quantias no socorro de alguém, para em seguida, apená-lo com a pena capital. Entretanto, para a estabilidade do sistema, a decisão da Suprema Corte é sumária e foi aplicada.