Raphael 16/03/2015Comentário sobre "O Amor nos Tempos do Cólera", de Gabriel García MárquezQuitei um débito consciencial e terminei a leitura do meu primeiro Gabriel García Márquez: "O Amor nos Tempos do Cólera". O livro é maravilhoso!
O tema não é assim tão incomum. Trata, sobretudo, do amor que espera paciente e resiste a todas as vicissitudes do tempo. Um amor de juventude, de cartas febris, carregado de idealização romântica, une os destinos de Florentino Ariza, um pobre telegrafista, e de uma moça mal saída da adolescência, de família abastada, porém não nobre, chamada Fermina Daza.
Foi por acaso que Florentino Ariza a viu. Encantou-se de imediato. Logo passou a frequentar os lugares por onde ela passava cotidianamente apenas para vê-la, buscando no fundo de sua alma atormentada a coragem para dar o primeiro passo. Esse primeiro passo foi dado, mas não vou entrar em detalhes a este respeito. Apenas registrar que a relação que Florentino Ariza estabelece com Fermina Daza, a princípio, muito me remeteu à relação que o Marius, de Victor Hugo, estabelece com Cosette, em Os Miseráveis. Não que esse amor romântico e profundamente idealizado seja incomum na literatura - pelo contrário. Mas, talvez por se tratar de leituras recentes, não pude deixar de identificar o telegrafista caribenho de García Márquez ao Barão de Pontmercy, do romancista francês: ambos monomaníacos, sonhadores e donos de uma obsessão doentia.
Marius, no entanto, seria mais feliz que o pobre Florentino. Por que? Porque Fermina Daza acabaria por rejeitá-lo, consentindo em se casar com outro homem: o jovem e renomado médico Juvenal Urbino, pertencente a uma família da aristocracia tradicional. A Florentino Ariza, profundamente arrasado, restou a espera - a projeção do passado que não foi no futuro que pode vir a ser. Viveria todos os seus dias para ser dela.
Confesso que, inicialmente, não votei muita simpatia à monomania de Florentino Ariza, à sua ambição obsessiva por uma mulher com a qual pouco convivera e que devia ser, em grande parte, uma projeção. Ao atravessar os seus sucessos e insucessos, no entanto, guiado pela prosa revivescente de García Márquez, é difícil não se apiedar de sua condição de heroísmo trágico.
E, assim, sob a inclemência do tempo que passa e tudo faz para conscientizá-los de que não passa apenas para os outros, o autor custura a evolução desses personagens. A vivacidade da juventude se despede, a velhice chega e a morte espreita. O amor é o amor em qualquer tempo - bem o diz García Márquez. Mas torna-se mais denso à medida que se aproxima da morte. E, no final das contas, seria a bandeira amarela da desgraça o salvo-conduto da ventura triunfante. O que quero dizer com isso? Quem ler entenderá...
Cercados pela inclemência do mundo e pela barbárie da civilização moderna, acho que somos especialmente sensíveis a esse tema do amor que espera, carregado de uma romantização, de um investimento ideal diante de uma situação a qual, de bom grado, delegaríamos a outrem. A tragédia daquele que espera é alçada aos píncaros da glória redentora, da beleza que consegue se impor em meio a um mundo de misérias, a exemplo da flor que vence as dificuldades do asfalto para contemplar a luz do Sol. Tragédia que tem a sua beleza...
Por fim, bateu à porta o momento pelo qual Florentino Ariza tanto aguardou: o doutor Juvenal Urbino estava morto. Mais de meio século de espera havia então transcorrido e, ainda no funeral do rival virtuoso, renovaria os seus votos de amor diante de uma viúva desconcertada e teria que se haver com uma compreensível explosão de raiva da parte dela. O que acontece a seguir, também não direi.
O texto de García Márquez é leve, bonito, envolvente e carrega uma profunda sensibilidade na humanização dos personagens. Não é um texto preocupado com máximas morais ou frases de efeito. Gabo é, sobretudo, um contador de histórias. E dá pra sentir, no texto, a paixão de quem o escreveu.