Hildeberto 04/04/2018Alguns livros nos dão sono, enquanto outros nos fazem ficar despertos até às duas da madrugada para descobrir seu desfecho. "O Homem Duplicado" pertence a esta segunda categoria de livros que nos despertam nos seus mais variados sentidos.
Tertuliano Máximo Afonso, ao assistir um filme, encontra um ator secundário idêntico a si. Daí parte toda a trama, pois Máximo Afonso irá tentar desvendar os mistérios por trás desse seu "duplicado".
Ler Saramago é como ouvir estórias contadas ao fim de tarde. A narrativa envolve os diálogos e acontecimentos, mas também comentários irônicos, pensamentos, possibilidades que de fato não ocorrerão, personagens metafísicas como o "Senso Comum" e uma boa dose de sarcasmo.
Sobre o que trata "O Homem Duplicado"? Para mim, uma das questões mais marcantes é a linguagem, sua função e suas potencialidades. Em diversos momentos o autor volta a este mesmo ponto.
Além disso, trata da complexidade do ser humano e das relações humanas, temas recorrentes na produção de Saramago.
Por fim, há o ponto central da narrativa, os dois duplicados. Especificamente, o autor questiona a identidade individual. Porém, tenho alguns questionamento. Afinal, embora os duplicados possuam aparência idêntica, no decorrer da leitura fica evidente que possuem personalidades distintas (o que já seria possível antever pelas suas escolhas profissionais). No meu entendimento, a questão da identidade do livro deve ser analisada a partir da busca no mundo de um espaço individual, mas não a uma perca de identidade. A problemática toda está nas relações sociais, não no que os duplicados são internamente. Eles não perdem suas respectivas identidades, apenas sentem ameaçado sua "face social", sua individualidade como vista pela sociedade. E talvez seja este o ponto: embora os seres humanos possuam múltiplas diferenças, tanto psicológicas como físicas, o atual panorama social nos toma como iguais pelos aspectos exteriores, ao induzir a uma redução das diferenças física e padronizar-nos, como se fôssemos produzidos em série. As diferenças que nos tornam únicos são ignoradas e, afinal, nos tornamos substituíveis. Embora tenhamos identidades particulares, a sociedade age como se não a tivéssemos devido à uma semelhança exterior e estereotipada baseada em hábitos, roupas e gostos.
Eis a grande questão do livro: embora idênticos em tudo na aparência, inclusive nas digitais, os dois duplicados teriam a mesma identidade? Poderiam ser substituíveis entre si?
Enfim, grande livro de um grande autor, que demonstra segurança notável na sua escrita (efeito Nobel?). Se tiver a oportunidade, leia.