Patty 20/11/2012Resenha da trilogia FIFTY SHADES (contém spoilers) - Inclui comentários sobre produtos culturais direcionados ao público femininoJá fazia algum tempo que eu estava curiosa a respeito desses livros, pois adoro livros eróticos, principalmente quando abordam BDSM. Mas esse tipo de literatura não costuma atingir um público tão grande.
A sigla BDSM se refere a um conjunto de práticas sexuais que trazem prazer através da troca erótica de poder. Em geral, os adeptos desse estilo de vida o praticam num espaço de tempo conhecido como “sessão” ou “cena”. Essa sigla deve ser entendida em grupos de duas letras.
BD significa Bondage e Dominação, o que inclui técnicas de amarrar e dominar pessoas com cordas de vários tipos ou correntes, causando desconforto e às vezes dor.
DS significa dominação e submissão, o que não necessariamente inclui o uso de dor. Implica que a pessoa submissa obedeça às ordens da pessoa dominadora. Nesse caso existe a possibilidade de que o relacionamento siga em sistema 24/7, o que significa que o(a) submisso(a) deve se submeter a seu(ua) mestre em tempo integral, vinte e quatro horas por dia nos sete dias da semana.
SM significa sadomasoquismo, que se refere a relações nas quais existe uma imposição de sofrimento físico ou humilhações de uma pessoa a outra.
Todos esses conjuntos de manifestações sexuais podem ter homens e mulheres em posição de dominação ou submissão. Não existe uma obrigatoriedade de papel pelo gênero.
Muita gente queria saber minha opinião, principalmente sobre um suposto teor machista na história, já que o romance fala de um homem dominador interessado apenas em se relacionar com mulheres submissas. Esse homem, Christian Grey, fica louco por Ana Steele desde que a conhece. Como ela não é do meio BDSM, ele tenta convencê-la a aceitar experimentar um período como submissa dele. Ao longo da história, os dois se apaixonam.
Eu gostei do enredo. Pessoas mais evoluídas intelectualmente que eu vinham dizendo que os livros estão muito mal escritos. A verdade é que encontrei falhas, não é nenhum "A História de O" (Pauline Réage, 1954), mas certamente proporciona alguns dias de diversão. E olha, que diversão... rs
Sendo um livro erótico, seria até hipócrita da minha parte não falar sobre as cenas de sexo. São excitantes sim, e não só pra mulheres, qualquer um que ler pode ficar excitado.
Falo isso porque esse livro tem sido chamado de pornô para mulheres. Tem muita gente teorizando em torno disso, a própria autora disse que mulheres preferem ler sexo a ver sexo.
Bem, eu não concordo com essa leitura dos fatos. Seria até estranho se mulheres gostassem de ver filmes pornográficos, já que a esmagadora maioria deles são direcionados ao público masculino e atuam como transmissores de misoginia. Até existem produtoras de pornô feminista (com respeito pelas mulheres e direcionado ao público feminino), mas a produção é mínima diante do extenso mercado de pornô machista vigente.
Quanto a gostar de ler, a verdade é que mulheres leem mais que homens. Pelo menos aqui no Brasil, segundo a pesquisa do instituto Pró-Livro, 57% do público feminino entrevistado foi considerado leitor (leu pelo menos um livro nos últimos três meses) contra apenas 43% dos entrevistados de gênero masculino. As leitoras leem em média 4,2 livros por ano, enquanto os leitores leem em média 3,2 livros por ano. Entre usuários de bibliotecas, as mulheres são 55%. Deve ser por isso que revistas masculinas só têm fotos... rs (brincadeira)
Mulheres leem mais sobre qualquer assunto, é claro. Mas é natural que elas gostem de ler livros eróticos, visto que costumam sentir desejo sexual. Se homens leem menos e têm à disposição toda uma série de produtos pornográficos, por que se interessariam por ler livros eróticos?
Dito isso, posso começar a discutir a questão da desqualificação dessa obra. Porque ela tem sido sistematicamente desqualificada, como qualquer best seller. A lógica de se desqualificar um best seller é a mesma de se desqualificar música pop ou as roupas e acessórios utilizados pelo grande público. Vem da ideia de que a elite; exclusiva, chique e esnobe adota as "melhores" tendências. A partir do momento em que a grande massa se apropria dessas tendências, aqueles objetos de consumo perdem a graça, e são automaticamente rechaçados.
Não sei por que existe isso, mas já ouvi pessoas afirmarem que não leriam tal livro porque "não gostam" de ler o que todo mundo está lendo. É um raciocínio meramente exclusivista, fundamentado na velha ideia de que "eu sou melhor que você". Afinal, essa gente acredita ser melhor do que aquela ralé que lê livros famosos no metrô.
Mas ainda assim, existe um outro fator fundamental para a rejeição de "Fifty Shades", e ele é o mesmo que impulsiona o ódio pela série "Crepúsculo": Mulheres gostam.
Estou exagerando? Então vamos pensar naqueles livros do Dan Brown. Eles são todos iguais; só mudam os elementos, mas o enredo é o mesmo. São best sellers, foram devidamente rejeitados pela elite, mas não receberam esse desprezo. Foram escritos por um homem, o protagonista é homem e em geral agradou o público masculino.
E quanto à série Harry Potter, direcionada ao público infanto-juvenil? Foi escrita por uma mulher, mas o protagonista da história é um menino. É direcionado para crianças e adolescentes de ambos os gêneros. Eu pessoalmente acho bem chatinha, mas muita gente idolatra. Nunca vi receber a rejeição que Crepúsculo recebe.
A verdade é que se um produto cultural é direcionado ao público feminino e/ou agrada meninas e mulheres, ele é automaticamente ridicularizado. Isso acontece com músicos como Restart, Backstreet Boys, Justin Bieber, entre tantos outros. E eles recebem sempre uma rejeição extrema, não é um simples "não gostar". É todo um movimento de destruição, similar ao movimento que destrói diariamente as mulheres em nosso mundo.
Eu sou de estudos culturais, então já estou habituada com discussões em torno do que é "alta cultura" e "baixa cultura". A verdade é que sempre se tende a classificar um produto cultural de acordo com o público que ele agrada. Os pobres, os negros, as mulheres, os gays. Se algo agrada grupos oprimidos, a rejeição inevitavelmente aparece.
Até carreiras normalmente escolhidas pelo público feminino são consideradas inferiores. Eu me lembro de uma propaganda da FEI (Faculdade de Engenharia Industrial) na qual uma garota desafiava estudantes a estudarem na FEI. Ela dizia em tom de desdém que quem não tinha condições (inteligência) para estudar engenharia, deveria fazer "letras" ou "psicologia". Ou seja, cursos que normalmente atraem mais mulheres são mais "fáceis", portanto inferiores. Engenharia é um curso de mais valor por ser mais "difícil" e atrair mais homens.
Eu mesma enfrento isso por ser Bacharel em Têxtil e Moda. Quando eu falo que tive prova de física na segunda fase do vestibular tem gente que ri. "Mas pra quê você precisou de física?". Ora, as máquinas da indústria têxtil seguem as mesmas leis da física que valem para outras máquinas. Mas não se pode pensar que ciências exatas sejam importantes ao se estudar moda, pois é "coisa de mulher".
Aí sempre aparece alguém pra dizer que as mulheres têm mau gosto. Mas quem decide o que é bom ou mau gosto? É claro que a gente sempre vai acreditar que tem o melhor gosto de todos, logo a opinião pessoal de qualquer pessoa sobre esse assunto sempre será parcial.
Semelhança com Crepúsculo (Contém spoilers sobre Fifty Shades e Twilight)
Essa é uma das questões mais importantes. A principio pode parecer idiota afirmar que há uma semelhança com Crepúsculo, já que Fifty Shades é uma série destinada ao público adulto e com cenas de sexo.
Bem, o fato é que há muitas semelhanças sim. Pra começo de conversa, quem nunca percebeu Edward Cullen como um homem controlador e possessivo não entendeu nada sobre Crepúsculo. Eu sempre respondo quando questionada sobre a série de Stephenie Meyer que Crepúsculo não é uma história de amor, mas uma história de obsessão.
No terceiro livro veio até um bônus: Uma parte do início do primeiro livro contada pela perspectiva de Christian (os livros são narrados pela personagem Ana). Sim, tipo um "Midnight Sun". Foi bem legal, porque assim consegui entender ainda melhor como funciona a cabeça de Christian.
Christian é milionário, lindo, inteligente, competente... Tem vários talentos em comum com Edward: toca piano, pilota aviões e helicópteros, fala francês. Tudo bem que ele é controlador e possessivo, mas o nível de preocupação dele com suas escravas é bem típico do Edward, chegando ao ponto de comprar pra todas elas um Audi A3 porque é um dos carros mais seguros da categoria.
Anastacia prefere ser chamada de Ana, a exemplo de Isabella que prefere ser chamada de Bella. Ana é, como Bella, atrapalhada, tímida, desprendida financeiramente e assexuada. Também tem os cabelos castanhos, não gosta de fazer compras, não entende de moda e tem apenas uma saia (a que ela usa quando conhece Christian).
Alguns pontos de semelhança chegam a irritar. Pra mim o mais difícil é aguentar a Ana dizendo o tempo todo que Christian é lindo. Isso também enchia o saco em Crepúsculo. Tudo bem que ambas as histórias são contadas sob as perspectivas das personagens, mas é difícil de aceitar que um(a) editor(a) não perceba o quanto isso pode cansar o(a) leitor(a).
E quando o Jack Hyde arma uma emboscada e pede pra Ana levar 5 milhões de dólares (:O) sozinha? O modo como Ana foge de seus próprios seguranças pra fazer isso me lembrou muito a fuga de Bella para se entregar ao vampiro James. E pior, após tamanha estupidez ambas acabaram quebradas em camas de hospitais.
Machismo?
Uma das considerações que mais ouvi sobre essa série é de que Ana entra numa relação abusiva com Christian. A esse respeito, vamos esclarecer algumas coisas. BDSM jamais envolveu machismo, mesmo porque, homens podem ser submissos e mulheres podem ser dominadoras.
Na história, Christian é um dominador. Ele nunca havia tido uma relação baunilha (fora do BDSM) antes de conhecer Ana. Ele deixa bem claro no contrato dele que as escravas dele são escravas em tempo integral (24/7). Embora ele só as solicite nos finais de semana, ele as controla o tempo inteiro. Elas se comprometem a se alimentar bem, dormir 8 horas por noite, fazer exercícios físicos...
Esse tipo de relação é conhecida como D/S no BDSM. Significa Dominação/Submissão, que é diferente de S/M ou Sadismo/Masoquismo. Não necessariamente uma relação precisa envolver as duas duplas, mas são sempre CONSENSUAIS. Ou seja, não existe coação, logo não há abuso.
Christian já havia sido um escravo submisso. Ele já tinha apanhado, já tinha sido amarrado, humilhado, já conhecia inclusive a sensação de ter o ânus penetrado. Nada que ele propunha a Ana era algo que ele não tivesse experimentado. Como esse homem poderia ser machista? Ele não fala em nenhum momento que ela é incapaz de fazer algo por ser mulher ou que ela deve ser obediente por ser mulher. Ele quer que ela obedeça porque é dominador e deseja controlar tudo, principalmente sua escrava.
É interessante que o vilão da história, Jack Hyde, é misógino. Na cena em que ele brutalmente agride Ana, fica muito clara a diferença entre um homem que bate numa mulher para destruí-la e um homem que bate numa mulher num jogo sexual. Christian havia batido nela várias vezes, mas jamais havia a machucado daquela forma. Jack Hyde a colocou no hospital e a traumatizou psicologicamente com apenas dois golpes e um par de insultos.
Algumas pessoas chiaram pelo fato de a garota ser virgem e o rapaz ser rico. Bem, quando a gente escreve um livro, precisa encontrar meios de conduzir a história de forma coerente. Se Ana não fosse virgem quando encontrou Christian pela primeira vez, como justificar que a primeira transa deles fosse baunilha? Não tem como colocar uma garota virgem numa sessão logo de cara.
Quanto a ele ser rico, faz parte da base da história. Todo aquele equipamento BDSM custa caro. Dominadores tendem a ser mais velhos, inclusive. Porque demora tempo para aprender a dominar, mas também porque pessoas mais velhas costumam ter a situação financeira mais definida.
Claro que não é usual um rapaz de 27 anos ser milionário, mas o dono do Facebook está aí para comprovar que acontece. E dentro do conjunto de conflitos da história, tudo se mostra coerente. E Ana é só seis anos mais nova que ele, não é grande diferença. São dois jovens descobrindo amor e sexo juntos.
Por tudo isso, só posso entender que de modo algum a série denigre a imagem das mulheres. As personagens falam abertamente sobre sexo casual, não existe nenhum julgamento de caráter em torno disso. Nenhuma delas se sente limitada pelo gênero, nenhum dos homens (exceto Hyde) apresenta conduta de desprezo por mulheres.
A autora tratou BDSM com muito respeito. Mostrou inclusive o terapeuta de Christian dizendo que não se considera mais BDSM uma parafilia desde os anos 1990. Mostrou o quanto BDSM envolve respeito e confiança, mas principalmente prazer para o casal. Ela também aborda o paradoxo do poder do submisso, pois o dominador não pode fazer nada sem seu consentimento.
Ana apresenta várias reações comuns em escravas iniciantes. Chora após ter sido punida, fica confusa embora sinta prazer. Christian se comporta o tempo inteiro como um mestre consciente de seu papel, procurando entender as necessidades de sua escrava.
Existe um fascínio altamente romântico nesse tipo de relação. A escrava tem uma sensação de pertencimento muito grande, pois ela é tudo de mais precioso que o mestre possui. E o mestre cuida dela, pois não é fácil encontrar uma escrava com a qual a relação funcione. Christian já tinha tido quinze submissas quando conheceu Ana.
Enfim, a série faz uma descrição honesta do BDSM como estilo de vida, sem estereótipos ridículos nem preconceitos leigos. Recomendo para quem gosta de romance, erotismo e uma pitada de aventura.