Reno Martins 10/12/2013A exposição de um sonho
Um sonho sonhado, fique claro. Daqueles onde os anseios da alma sobrepõem a coerência e a coesão dos acontecimentos. More foi de uma crueza sincera ao batizar sua obra, coisa ignorada pelos mais ingênuos ou mais espertos, que pretendem tomá-la como realidade possível.
O primeiro alicerce do sonho é o postulado da abundância. O autor presenteia sua ilha com um volume ilimitado de recursos, obtido pelo trabalho agrícola obrigatório de seus cidadãos. Licenciado pela utopia, despreza a noção de produtividade dos fatores: se um hectare produz 1700kg de trigo, não vai produzir 100 vezes mais se for centuplicado o número de pessoas no campo. Esse pressuposto, desmontado pela própria natureza da realidade, faz ser irrelevante para os utopianos qualquer análise de custo-benefício. Se o trabalho diário de seis horas gera recursos exuberantes, os gastos podem sê-lo na mesma medida. Assim, o sonho permite que multidões de trabalhadores sejam transportados de um lugar para o outro, conforme a necessidade da produção, sem que qualquer gasto de logística ou infraestrutura seja considerado. Dentro do encantamento, o que era bom ficar melhor e a abundância se tornar superabundância.
Essa prosperidade fácil faz os utopianos pródigos com o fruto ilusório do seu trabalho. Eles não vacilam em pagar, sem cálculo, por qualquer coisa que necessitem: evitar guerras, subornar inimigos, regatar companheiros, obter ferro; sempre vendendo o que possuem a baixo preço, sem que nunca nada lhes falte. Lá, os homens estão isentos de exercer uma das mais comuns e difíceis ações intelectivas: decidir considerando o limite dos recursos disponíveis. Um paraíso, sem dúvida.
Mas, essa fartura quimérica não é a única coisa que seria cobrada do sonho pela realidade. Na ilha onde a propriedade é coletiva e não circula dinheiro, os bens comuns ficam disponível gratuitamente para todos, em armazéns comunitários. Seriam manufaturados pelos próprios cidadãos, conforme sua apetência, e sua abundância (ela novamente) impediria desperdícios pois "quem sabe que não irá faltar não se apressa em pegar desnecessariamente". More se licencia de explicar como os bens seriam produzidos na quantidade e variedade adequados. Se todos têm a prerrogativa de manufaturar o que lhe apetece e muitos gostarem de fazer sapatos, quem faria as outras coisas? Quem seria obrigado a deixar de produzir os prazerosos sapatos para se dedicar ao entediante, mas necessário, ofício de produzir chapéus? More subentende resolvido o espinhoso dilema humano de escolher entre o que se deseja e o que se necessita. Sem dinheiro ou propriedade, a única alternativa viável para sua Utopia são listas para saber o que falta, racionamentos para acessar os bens e tirania para determinar quem fará o trabalho que ninguém deseja. A revolta, para o bem da sociedade, é claro, seria punida com veemência, como mostra com fartura a história de todos os socialismos - generalizadores da propriedade coletiva.
Mas o sonho não sonha apenas no econômico. Ele também muda a própria natureza humana. Apenas em Utopia homens levam mulher e filhos para a vanguarda de guerra e isso os deixa mais aguerridos e concentrados no combate. Apenas em Utopia, os juízes julgam sem nunca terem conhecido o amor ou ódio. O desejo intenso de se manter no sonho, e só o fato de ser um sonho, permite que em Utopia convivam profundos paradoxos morais. Lá se ama toda a humanidade como irmã, sem se ressentir em pagar para que outros homens miseráveis de nações vizinhas sacrifiquem-se em combate. Lá se vangloria de evitar guerras a "qualquer custo", sem peso por promovê-la para "expandir-se para nações vizinhas que não sabem utilizar seus recursos naturais com sabedoria".
Essas características "exclusivas" de Utopia foram e são imitadas por utopianos da vida real, algumas nos sendo até bem familiares. Aqueles que querem trazer Utopia para o mundo, desprezando que não estamos numa fantasia onde só o que pensamos é possível; convertem o sonho de alguns no pesadelo de muitos. A fome é parida pelo sonho da abundância; a conduta nociva, pelo da moral superior; a tirania, pelo do ideal do bem comum. Infelizmente, isso é a Utopia na vida real. Claro que, na pura fantasia, também há algo de bom: a convivência de jovens e velhos, com o respeito devido a esses últimos; a tolerância, com a punição daqueles que a usam para solapá-la; a diminuição das leis, atentando para os incetivos que cada uma delas provoca...
Como saldo, avalio que o clássico tem muito mais aspectos para nos protegermos do que acatar. Duas estrelas, por toda inspiração e sofrimento que causou More, em seu fascinante pesadelo disfarçado de sonho.