Lucas1429 29/08/2021
À fragilidade humana, uma hóstia de sangue
Cristã inveterada, Flannery não era, no entanto, arredia à realidade existencial. Sua escola é pertencente aos modernistas, escritores que retomam elementos críveis com o viver e sua agruras, abdicando por muitas vezes das passagens exponenciais do romantismo, por exemplo, com agora vieses vanguardistas. Adequada à categoria "gótica sulista", embasbacou leitores afora com sua escrita enveredada ao decadente humano e geográfico do sul norte-americano, dotada de precisão atemporais.
Tendo vivido pouco, o lúpus ceifou sua vida aos 39 anos, em 1964, soube recolher não só a si dentro de sua fazendo na Geórgia, como os elementos necessários para se transformar numa das maiores contistas do ocidente, sem eufemismo. Nesta coletânea estão reunidos dez importantes histórias que exploram o radicalismo, o racismo, a cristandade exacerbada e a xenofobia, delineados numa exposição latente do pensamento, e comportamento, visto, com mais afinco, aliás, ainda nos dias de hoje.
Os contos não agem a partir de um crescendo do enredo, de um clímax explicativo, de um otimismo premonitório; eles são reais, cruciais e explosivos. Há diversos simbolismos e metáforas espalhadas em cada frase, parágrafo, na composição de suas personagens, em suas falas. Aquele sul ali transposto de fundo é o herdeiro da derrota da Guerra Civil, da Primeira Grande Guerra, da Depressão de 30. E seus herdeiros compõe prerrogativas e maneirismos obsoletos insistentemente praticados.
Por exemplo, no conto título, uma avó teimosa e egoísta leva sua família de encontro direto com um perigoso assassino visto por ela numa manchete local; sua paz interior virá da resolução desse homem dito por ela "mau". "O Rio", mergulha em um afluente utilizado como instrumento de batismo cristão do protestantismo, quando reúne um séquito crente nas milagrosas águas, situação toda ironizada pela autora. No "O Negro Artificial", Mr. Head leva seu neto, Nelson, ao espaço urbano diferente de sua morada, o rural; ali, ensina o preconceito contra os negros presentes, habitantes de uma sociedade em formação. Em "Gente Boa da Roça", é a vez da religião posta em xeque novamente quando um vendedor de Bíblias apresenta ser quem não é para uma moça deficiente cientificista. É o contraponto religioso versus científico. Ainda que pareça parcial ao ridicularizar seu povo "caipira" e inapropriado à modernidade vindoura, Flannery remete-se ao paralelismo do ateísmo ou a consequência da falta de fé. É escrevendo sobre o Outro, em detrimento da branquitude, analogia respeitosamente limitada por ela, que irá se preocupar em mais lesar sua etnia frente às demais, sem roubar um local de fala não vivido.
A escritora ainda sim não é uma conversora, ela não limita sua prosa a querer erradicar o mal do mundo, ou mesmo justificar sua podridão pela falta da conduta religiosa. É simplesmente uma pessoa condescendente com os injustiçados, com sua terra (amada mesmo de porém), e reveladora da moral a preço de banana, sem dicotomias, acreditando no ser nocivo, representativo do mal verdadeiro, hoje banalizado. Sua escrita, e sua intenção, ainda é verossímil, e sinceramente, eterna.