Steph.Mostav 26/12/2020Uma queda injustaCom essa, termino a releitura das quatro grandes tragédias de Shakespeare esse ano e a experiência foi bem rica comparada às primeiras leituras. Em Otelo, temos o conflito entre o íntegro protagonista e a maldade mesquinha, invejosa e racista de Iago. Ao contrário das três outras peças, esta se desenvolve com unidade temática, sem enredos paralelos para além da crise emocional de Otelo. Sobre ele, é importante frisar que desde o início é apresentado como uma pessoa nobre e respeitada, tão íntegro que não concebe que Iago possa ser tão dissimulado. Assim, ele não é ingenuamente enganado pelo vilão, e sim uma vítima de um mal motivado por questões de classe, raça e hierarquia. Como todos os heróis trágicos, Otelo aprende através do sofrimento, mas o culpado por sua queda não são suas próprias atitudes e sim a manipulação cruel e engenhosa de Iago. Afinal, o herói digno do início não é o mesmo Otelo que o ciumento irracional que busca vingança do final e o responsável por essa mudança é Iago, que se aproveita da fragilidade identitária de Otelo. Aproveitando-se das vulnerabilidades do herói, Iago o atinge onde ele é mais vulnerável: na diferença entre os universos culturais de Otelo e Desdêmona, na sua constante e quase aflita vontade de se reafirmar como cristão e rejeitar suas origens para ser aceito no contexto cultural e político de Veneza, sendo um homem negro em meio à soldados, líderes e nobres brancos. É Iago quem corrompe as virtudes de Otelo, como a valorização que aquele dava à livre iniciativa de Desdêmona para escolher muito mais do que poderia se ainda vivesse com o pai. Essa liberdade é distorcida pela influência de Iago como sendo algo degenerado e um claro sinal de infidelidade. Desde o ínicio, Otelo luta para se afastar dos estereótipos racistas que associam à imagem dele, como no julgamento do início, em que tem de provar que seu casamento com uma nobre como Desdêmona não foi fruto de bruxaria e o seu relacionamento com uma mulher branca não é sexualizado e "monstruoso" como os personagens racistas tendem a caracterizá-lo. O sucesso de Iago é atingir esse casamento, que "é importante para Otelo menos como uma relação sexual do que como um símbolo de que é amado e aceito como uma pessoa, um irmão na comunidade veneziana. O monstro em sua mente, hediondo demais para ser mostrado, é a desconfiança, que ele até agora reprimiu, de que é valorizado apenas por sua utilidade para a Cidade. Não fosse por suas funções, ele seria tratado como um bárbaro negro." A meta de Iago é não só destruí-lo, como ruir tudo ao seu redor, como fez a Rodrigo, que corrompeu até que o tolo apaixonado tornar-se potencial assassino. Iago sente desprezo por todos os que manipula e, como um personagem que deseja destruir os outros, nunca funciona sozinho, mas em contraste com alguém. Outra relação de contraste é entre a visão idealizada de amor de Desdêmona e o pensamento mais realista de Emília, mas nesse caso as diferenças não impedem que se forme um lindo laço de amizade entre as duas. Dentre todas as quatro grandes tragédias, Otelo é aquela da qual mais torcemos pelo sucesso do protagonista, porque dentre todas as quedas, a sua foi a mais injusta.