jota 30/03/2020Dez dias, cem histórias...
Giovanni Boccaccio (1313-1375) é um dos mais importantes autores do Trecento (período inicial do Renascimento italiano) juntamente com Dante Alighieri (1265-1321) e Francesco Petrarca (1304-1374). Sua obra mais famosa é Decamerão (ou Decameron), escrita entre os anos de 1348 e 1353. Ela se desenrola numa vila isolada de Florença durante dez dias, ou dez jornadas, conforme os vocábulos do grego antigo “deca” e “hemeron”. Nesse período sete moças e três rapazes, fugindo da devastadora peste negra que assolava a Europa desde 1340, passam muitas horas contando histórias perfazendo uma centena delas, dez por dia, cada jovem narrando uma diariamente. De um modo geral são narrativas curtas, de poucas páginas e algumas podem ser consideradas simples anedotas, nem sempre lá muito engraçadas, espirituosas talvez. É o caso das novelas da Sétima Jornada, quase todas extremamente curtas.
Para Edoardo Bizzarri, autor da Introdução à Leitura de O Decamerão (edição 2018, Nova Fronteira): “As novelas de O Decamerão apresentam os mais diferentes tipos de narração; vão do conto complexo, rico de enredo, à simples anedota e à piada; obedecem às mais variadas inspirações, do cômico ao trágico, do burlesco ao heroico; tratam dos mais diferentes assuntos. Tanto é assim que nelas se reflete toda a sociedade contemporânea, nos seus múltiplos aspectos, do plebeu ao cavalheiresco, da burguesia culta àquela exclusivamente mercantil.” Certo, é isso mesmo, mas o conjunto das narrativas me pareceu meio desigual quanto ao interesse que pode despertar no leitor comum para prosseguir a leitura até o final do volume. Afinal de contas, são cem histórias, muita coisa. É verdade que não há nenhuma narrativa enfadonha, mas algumas parecem um tanto ingênuas, com muitas coincidências e desfechos resolvidos de modo rápido, homens e mulheres que se apaixonam perdidamente, sem remorso por traírem seus cônjuges ou noivos, raptos de donzelas e esposas, religiosos entregues ao sexo etc. A se levar ao pé da letra as histórias de Boccaccio, parece que a Idade Média de seu tempo não foi tão entrevada assim, teve muita diversão...
Uma característica bastante acentuada nos textos de Boccaccio é que os religiosos são quase sempre mostrados em ângulos desfavoráveis: são lascivos, hipócritas, desonestos, apegados a bens materiais, pecadores, o que tornou a obra suspeita entre as autoridades católicas. Na Décima Novela da Nona Jornada, um padre, “Donno Gianni, por instância do compadre Pedro, faz o feitiço destinado a transformar sua esposa em égua; quando vai para aplicar a cauda, o compadre Pedro, dizendo que não quer cauda, arruína o efeito todo da mandinga.” No filme homônimo de Pier Paolo Pasolini, rodado em 1970 e baseado em nove histórias do livro, essa novela foi muito bem transportada para a tela e provoca risos no espectador. Ela é apenas um dos textos em que Boccaccio fustiga os religiosos, há vários outros. Veja abaixo um trecho da Terceira Novela da Sétima Jornada em que “O frade Rinaldo deita-se com a comadre; o marido encontra-o na alcova com ela; e ela e o frade fazem-no crer que estavam encantando os vermes do afilhado.” Boccaccio escreve:
“Ah! Vitupério deste mundo arruinado! Esses frades não se envergonham de aparecer gordos, de aparecer com rostos corados, de aparecer efeminados em suas roupas e em todas as suas coisas; e eles não o fazem como as pombas, e sim como procedem os galos cheios de empáfia, de crista erguida e peito empolado; e isto é ainda pior. Deixemos de lado a circunstância de eles terem suas celas repletas de frascos, de pomadas e de unguentos; nelas abundam as caixinhas cheias de doces, as ampolas e as pequenas garrafas contendo águas cheirosas e óleos aromáticos; abundam os garrafões de malvasia, de vinhos gregos, bem como de outros vinhos; tanto é assim que tais celas nem parecem mais celas de frades, e sim lojas de especiarias, ou casa de unguentários, àqueles que as contemplam.”
Mesmo com toda sua crítica aos membros da igreja católica as histórias de Boccaccio sempre foram apreciadas pelos leitores (ou ouvintes) desde sua época, quase seiscentos e setenta anos atrás, senão não seriam tão conhecidas ainda hoje em dia. Grande parte delas traz, entre vários temas tratados, episódios amorosos, eróticos, aventureiros e casos pitorescos com tons dramáticos ou cômicos etc. Alguns críticos acham possível que Boccaccio tenha influenciado autores ingleses como Geoffrey Chaucer (de Os Contos de Cantuária) e até mesmo Shakespeare. Impossível não recordarmos Romeu e Julieta, deste último, no enredo da Sétima Novela da Quarta Jornada. Vejamos: “Simona ama Pasquino; os dois se encontram juntos, num horto. Pasquino esfrega, nos próprios dentes, uma folha de salva; e morre. Simona é presa; e, desejando mostrar ao juiz como foi que Pasquino morreu, também esfrega nos dentes uma daquelas folhas; e, semelhantemente, morre.” Esta é apenas uma de algumas histórias ditas tristes, de amores impossíveis ou finais trágicos, que encontramos no volume. Mas a maioria termina bem ou de modo engraçado, destaque-se.
Algumas novelas dariam, não sei se ótimos filmes, mas certamente alguns roteiros bastante movimentados. É o caso da Sétima Novela da Segunda Jornada, num resumo do próprio Boccaccio: “O sultão da Babilônia põe uma filha em viagem, para ela se casar com o rei do Garbo. Através de numerosas peripécias no decorrer de quatro anos, a moça cai nas mãos de nove homens diferentes, em lugares diversos. Finalmente, restituída ao pai, ainda como pucela [donzela, virgem], vai a moça para junto do rei do Garbo, como tencionara antes, para ser sua esposa.” Esta, como as demais histórias, até mesmo as bem curtas, são abertas com uma pequena sinopse onde Boccaccio as resume e antecipa o final. Melhor não ler as sinopses, portanto.
Já que se falou em Pasolini acima, o diretor italiano filmou algumas dessas novelas, nove dentre as cem, especialmente aquelas em que podia exibir cenas de nudez e sexo (como quase sempre fazia em suas obras) ou com alguma comicidade. De certo modo ele conseguiu captar um tanto do espírito da obra boccacciana sem alterar muita coisa na versão do texto para a tela. Ver o filme pode ser útil para quem não pretende encarar o texto volumoso mas deseja conhecer um pouco desse importante autor florentino. A Primeira Novela da Terceira Jornada teve sua transposição fiel para o cinema com a história de “Masetto de Lamporecchio [rapaz forte e bem apessoado que] faz-se mudo e torna-se hortelão de um convento para mulheres; e elas competem entre si para se deitarem com ele”, nas palavras do próprio Boccaccio. Temos aqui a combinação perfeita de erotismo (ou sexo mesmo) com a pesada crítica aos religiosos de sua época – como já foi destacado antes -, no caso freiras sacanas que tornam possível a realização de um “milagre”.
Vi no IMDb que essa mesma novela sozinha ganhou em 2017 um longa-metragem canadense, The Little Hours, cujo título brasileiro ficou sendo A Comédia dos Pecados, mas que não foi muito bem avaliado por críticos ou espectadores. Boccaccio até que foi bastante levado ao cinema e isso desde o início do século passado. Em 1910, na própria Itália, foi rodado um curta-metragem contando as aventuras de “Andreuccio de Perúsia, [que] indo a Nápoles, a fim de comprar cavalos, é surpreendido, numa noite, por três graves acidentes; escapando com vida de todos, regressa à própria casa com um rubi.” Essa história é a Quinta Novela da Segunda Jornada e também está no filme de Pasolini, num de seus episódios mais engraçados. Bem, mas era para falar do livro, não tanto de filmes, não é mesmo?
Lido entre 06 e 29/03/2020. Minha avaliação da leitura: 3,5.