Fabio Shiva 29/04/2021
É bem assim a aventura da Literatura!
Esse é um livro que impressiona por muitos motivos. Foi originalmente publicado em 1955, como uma série de 14 fascículos do jornal colombiano El Espectador, como o relato verídico de Luis Alejandro Velasco, marinheiro do destroier ARC Caldas, que caiu no mar durante o trajeto da cidade de Mobile, nos Estados Unidos, a Cartagena das Índias, na Colômbia. Sete outros marujos também tombaram do navio junto com Velasco, mas ele foi o único que sobreviveu para contar.
Apesar de Velasco assinar a narrativa de seu naufrágio, ela na verdade foi escrita pelo então jovem repórter do jornal El Espectador, Gabriel García Márquez. Somente em 1970 é que “Relato de um Náufrago” foi publicado em livro, com o nome de Gabo sendo associado ao texto. E que texto, meus camaradas!
Um dos fatores que mais me impressionaram nessa leitura é a intensidade do suspense que García Márquez consegue criar em sua narrativa. E isso é especialmente marcante quando consideramos que praticamente a história toda é revelada já na capa do livro, que traz como título completo:
“Relato de um Náufrago que esteve à deriva numa balsa salva-vidas por 10 dias sem alimento ou água, foi proclamado um herói nacional, beijado por rainhas de beleza, feito rico com a publicidade, e então rejeitado pelo governo e esquecido para sempre.”
A história de Velasco, por si só, suscita grande interesse. Existe algo de profundamente comovente em histórias de naufrágio. O arquétipo do naufrágio é o homem derrotado pelas forças da natureza, é o homem à mercê da natureza. Nesse sentido, o momento em que vivemos, da pandemia do coronavírus, pode ser “lido” como a narrativa de um naufrágio. A Covid-19 virou a canoa do capitalismo predatório, do liberalismo, da sociedade de consumo. Ou enxergamos isso e buscamos novas embarcações que possam conduzir a humanidade a destinos menos inconsequentes, ou continuaremos nos debatendo em meio ao mar revolto, até nos afogarmos todos, um por um...
“Relato de um Náufrago”, contudo, apresenta ainda muitas outras implicações. Em 1955 a Colômbia vivia sob a “ditadura folclórica” de Gustavo Rojas Pinilla e a versão oficial era a de que os oito marinheiros caíram do ARC Caldas devido a uma tempestade no mar. Só que a narrativa de Velasco demonstrou que não houve tempestade alguma: o problema foi que o destroier colombiano estava carregando um excesso de muamba: geladeiras, fogões e outras bugigangas. Foi um escândalo que tornou pública uma evidência incontestável de corrupção na ditadura militar. Fazendo um paralelo com a nossa história brasileira, sempre me causa espanto a ingenuidade – ou o cinismo – daqueles que afirmam que não houve corrupção durante a ditadura militar, só porque nenhuma notícia a respeito foi publicada nos jornais da época! Basta voltar ao exemplo colombiano, onde a denúncia involuntária de corrupção no governo acabou custando caro: Velasco deixou de ser o herói nacional da noite para o dia, o jornal El Espectador foi fechado e Gabriel García Márquez teve que fugir para o exílio...
Mas o que me motivou a ler esse livro foi uma metáfora de natureza totalmente diversa. Amo uma fala de Hermann Hesse sobre o ofício de escritor, que ele compara a uma aventura selvagem, como se lançar em um barquinho em pleno oceano. E esse barquinho pode nos conduzir tranquilamente a um porto seguro, como também pode muito bem nos colocar em situações extremas, desafiando tubarões, o sol inclemente, a fome e a sede. É bem assim a aventura da Literatura!
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