Maria - Blog Pétalas de Liberdade 17/01/2018Resenha para o blog Pétalas de Liberdade A obra é composta por oito contos, sete já publicados em edições anteriores e um publicado pela primeira vez nessa edição. Um pouco sobre cada conto:
"O Cão Tinhoso olhava-me com força. Os seus olhos azuis não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam cheios de lágrimas que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer." (página 36)
O primeiro conto é o que dá título ao livro. Com cerca de quarenta páginas e narrado pelos olhos de um menino, "Nós matamos o cão tinhoso" nos apresenta um grupo de estudantes que mora numa vila onde há um cão cheio de marcas e feridas (prefiro não revelar aqui o que causou essas marcas), e que por seu aspecto repulsivo e seus olhos muito expressivos, causa medo e repulsa nas crianças e nos outros cães. Somente uma das garotas da escola não o temia, e por mais esse motivo era considerada "ruim da cabeça". O título do conto já deve lhes dar uma ideia do que acontece, não é mesmo?! Mas não pensem que foi algo fácil, algo que não trouxe uma reflexão para os garotos, que não mexeu com eles de alguma forma.
"Eu sabia que ele já sabia de muitas coisas para só querer o que qualquer cão podia ter. O Cão tinhoso devia estar à espera de qualquer coisa diferente do que os outros cães costumam ter" (página 44)
"Inventário de imóveis e jacentes" é apenas a descrição de uma casa, com seus cômodos e móveis. E mesmo sendo apenas uma descrição de poucas páginas pelos olhos de um dos filhos do dono da casa, foi um dos contos que mais gostei. É uma casa pequena para o número de pessoas que abriga, uma casa simples, mas onde há livros. Em "Dina" somos apresentados ao árduo trabalho numa plantação de milho. Trabalho que fica ainda pior quando o capataz branco demora a chamar os trabalhadores para a hora do almoço. Mas o que os pobres trabalhadores poderiam fazer?
"A velhota" é sobre um rapaz que depois de ser agredido, decide ir até a casa da mãe e dos irmãos mais novos. Lá, ele se sente dividido entre contar aos irmãos pequenos sobre a brutalidade que enfrenta e um fiapo de esperança de que o futuro seja diferente para os irmãos, que talvez eles não se revoltem como ele ao ser humilhado ou que talvez os mais novos vivam numa época melhor, sem sem tantas humilhações.
"E precisava ir para casa para encher os ouvidos de berros, os olhos de miséria e a consciência de arroz com carril de amendoim." (página 81)
"- Conta, conta! - e os miúdos rodeavam-nos na esteira.
Não, eu não contaria. Não fora para isso que viera para casa. Além disso, não seria eu a destruir neles fosse o que fosse. A seu tempo alguém se encarregaria de os pôr na raiva. Não, eu não contaria." (página 84)
"Por que não acreditar em qualquer coisa de giro? Como por exemplo que a formação dos miúdos fosse diferente da minha e que lhes conferisse uma condescendência para com aquelas coisas, uma condescendência que as minhas coordenadas emocionais não comportavam... E que talvez, eu sei lá, que talvez para com eles o tempo obrigasse a mais compreensão, mais carinho, sim, a mais humanidade... Porque talvez a velhota tivesse razão, há o tempo, o tempo..." (página 85, "giro" significa interessante, bonito)
"Papá, cobra e eu" volta a ser narrado por um garoto, em cuja propriedade há uma cobra que está causando problemas para a família. E veremos a aproximação do menino com o pai, que lhe dará sábios conselhos que talvez ele só compreenderá quando for maior.
"- Meu filho, tem de haver uma esperança! Quando um dia acaba e sabemos que amanhã será tudo igualzinho, temos de ir arranjar forças para continuar a sorrir e continuar a dizer ‘isso não tem importância’. Ainda hoje viste o Sr. Castro a enxovalhar-me! Isso foi só um bocadinho da ração de hoje... Não, meu filho, mesmo que isto tudo só O negue, Ele tem de existir!...
O Papá parou de repente e sorriu num esforço. Depois acrescentou:
- Mesmo um pobre tem de ter qualquer coisa... Mesmo que seja só uma esperança!... Mesmo que ela seja falta!..." (página 103)
"- Sabes, meu filho, - o Papá falava pausadamente e gesticulava muito antes de cada palavra - sofre-se muito... Muito, muito, muito!... A gente cresce com muita coisa cá dentro mas depois é difícil gritar, tu sabes...
[...] Quando um cavalo endoidece dá-se-lhe um tiro e tudo acaba, mas aos cavalos mansos mata-se todos os dias. Todos os dias, ouviste? Todos , todos, todos enquanto eles se aguentarem de pé!..." (página 104)
"As mãos dos pretos" traz a curiosidade de um garoto em entender o motivo de as palmas das mãos dos negros serem mais claras que o restante do corpo. Curiosidade que gera muitas histórias com visões diferentes, algumas bem racistas, mas é a explicação da mãe que mais vai tocar o garoto.
"Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra de homens... Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens." (página 109)
"Nhinguitimo" começa falando sobre pássaros, depois nos mostra como os sonhos de prosperar através do trabalho duro poderia ser destruído pela ganância dos que já tinham dinheiro.
"- Matchumbutana... - Vírgula Oito falava lentamente, titubeante - Matchumbutana... Eu nasci naquela terra... O meu pai também nasceu lá. Toda a minha família é do Goana... Os meus avós todos estão lá enterrados... Maguiguana, o Lodrica tem lojas, tem tratores, tem machambas grandes... Por que é que ele quer o nosso sítio? Por quê?" (página 128)
"Rosita, até morrer" é o último conto do livro, um extra publicado na edição da Kapulana, e é uma carta de Rosa para Manuel, o pai de sua filha. Rosa não escreve usando a grafia correta das palavras, mas faz o possível para mostrar para Manuel que se lembra dele e que ficaria contente se pudesse vê-lo novamente, já que faz tempo que ele a abandonou. É um conto tocante.
"Quando tu quer tu vem escançar, só escançar, conhecer tua filha comer os ovo com galinha, com cabrito quando vocé guenta, beber ucanhi nas família da terra, tomar banho no rio, dançar xingombela no casa de N’Dlamini, mais nada. Quer? Vocé vai pruguntar as pessoa que anda aqui a falar assim: O! Manuel tem esta nossa pele mas agora é branco, comprou ser branco nos papel, esquenceu os vovô dele que morreu, esquenceu filha dele que nasceu, esquenceu terra, esquenceu tudo. Eu diz é mentira, Manuel não pode esquencer. As pessoa ri, as pessoa diz eu não sabe, as pessoa diz cada vez eu é polícia também. Vocé é? O, vem dizer mesmo! Depois vocé vai tembora quando não gosta ficar aqui fazer machamba, ensinar as pessoa no escole de noite que voces tinha na casa de Mussá. Vocé vai, eu não vai agarar vocé, só vai chorar mesmo." (páginas 140 e 141)
Considerações gerais: O livro "Nós matamos o cão tinhoso" foi publicado pela primeira vez em 1964, e no mesmo ano o autor Luís Bernardo Honwana foi preso pela sua militância em prol da independência de Moçambique, até então uma colônia Portuguesa. A obra é considerada uma das mais importantes da literatura moçambicana e africana, e talvez vocês saibam que Moçambique é um dos países onde se fala o Português (além de outras línguas nativas).
Foi interessante notar a diferença entre o Português falado e escrito lá em Moçambique nos anos sessenta e a forma como o falamos nos dias atuais. Percebi que inúmeras palavras que vejo conhecidos com mais idade usando e que eu até achava que eram "erradas", são apenas palavras que foram sendo menos usadas com o tempo. Além de algumas notas de rodapé para ajudar o leitor a entender certos termos, pesquisar no dicionário outras palavras que aparecem no texto pode auxiliar o leitor a compreender melhor as histórias.
Por ser uma obra com um certo contexto histórico e pelo fato de eu amar contos, estava com expectativas elevadíssimas, e confesso que a leitura não alcançou minhas expectativas, talvez pelo choque entre a cultura em que vivo e a encontrada nos contos. Ainda assim, é um livro que vale a pena ler para conhecer mais da realidade de Moçambique de décadas atrás, e entender melhor as relações de poder entre colonizadores e colonizados. No final do livro há um artigo contextualizando um pouco a obra, e foi interessante para mim encontrar interpretações diferentes das minhas para alguns contos. Falando em interpretações, se vocês pesquisarem no Google pelos títulos ou trechos dos contos presentes na resenha, encontrarão várias análises deles (bem mais estendidas que meus pequenos comentários), o que mostra a relevância da obra.
Enfim, entre traquinagens de crianças, trabalho árduo em plantações, conflitos entre brancos e negros, entre colonizadores e nativos, e sonhos desfeitos frente à dureza da realidade, "Nós matamos o cão tinhoso" é um livro válido para entendermos um pouco mais da cultura africana, uma cultura que também chegou até o Brasil, ainda que para mim, mulher, jovem, mineira e branca, seja uma realidade muito distinta da minha.
A edição da Kapulana tem uma capa condizente com a obra, páginas amareladas, boa revisão e diagramação com margens, espaçamento e letras de bom tamanho.
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