Manuel Gimo 09/08/2019
Nós Matámos o Cão-Tinhoso, uma obra à frente de seu tempo!
AUTOR: Luís Bernardo Honwana
TÍTULO: Nós Matámos o Cão-Tinhoso
LOCAL DA PUBLICAÇÃO: Maputo
EDITORA: Alcance Editores
EDIÇÃO: 2ª ed.
ANO: 2014
PÁGINAS: 121
FORMATO DO LIVRO: eBook (PDF)
SINOPSE:
Escritor moçambicano, Luís Bernardo Honwana nasceu em 1942, vivendo parte da sua vida ainda durante a época colonial. Em 1964 publicou “Nós Matamos o Cão-Tinhoso”, uma narrativa que compila sete contos, onde o visual domina a escrita, e a hierarquia colonial, nas suas marcas do dia-a-dia, domina as temáticas.
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ANÁLISE:
“Nós Matámos o Cão-Tinhoso” é uma colectânea de sete contos da autoria de Luís Bernardo Honwana, publicado originalmente em 1964 pela Editora Afrontamento. A segunda edição sai sob a chancela da Alcance Editores meio século depois.
“Nós Matámos o Cão-Tinhoso” foi escrita durante o tempo que Honwana passou na prisão, quando foi preso pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a secreta do regime colonial português, por simpatizar com os ideias nacionalistas.
A obra é um clássico da Literatura Moçambicana. É considerada uma das melhores obras literárias africanas do século XX, junto com “Ualalapi” (1987) de Ungulani Ba Ka Khosa e “Terra Sonâmbula” (1992) de Mia Couto. É igualmente considerada o inaugurador da Literatura Moderna Moçambicana, trazendo inovações no campo estético-estilístico e linguístico. Projectou o seu autor ao pódio de melhores escritores moçambicanos, e, desde a sua publicação, a obra tem vindo a exercer uma grande influência na geração pós-colonial de escritores moçambicanos.
NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO
«- Sabes?... A Isaura foi dizer ao pai que nós...
- O quê?
- Ela pediu ao pai para nos bater...
- Bater?... Porquê?
- Porque NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO!... - E ria-se com força, todo torcido.
- Não é tramada? E esta, heim?... BATER-NOS PORQUE NÓS MATÁMOS O CÃO-TINHOSO!...
Depois calou-se. E aí falou a Senhora Professora:
- Meninos, para a aula!» (p. 52)
O primeiro conto é o que dá nome à obra. É também o conto mais longo da colectânea. Ginho, o menino protagonista, narra, em primeira pessoa, como ocorreu a horrenda morte do Cão-Tinhoso, um cão vadio e repulsivo que tinha “a pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas, e em muitos sítios não tinha pelos nenhuns, nem brancos nem pretos e a pele era preta e cheia de rugas como a pele de um gala-gala. Ninguém gostava de lhe passar a mão pelas costas como aos outros cães.” (p. 25). Odiado por todos (menos o Ginho e a menina Isaura), o destino do canino é traçado pela poderosa mão do Senhor Administrador da vila. E os algozes? Os miúdos da vila, grupo do qual o nosso protagonista mirim faz parte.
Repleto de simbolismos e metáforas sociais, “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” é arrebatador, portentoso, e macabramente angustiante.
Com uma linguagem coloquial, ordinária e assente na inocência e emoções de uma criança em tenra idade, “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” é um conto genial que espelha a realidade deprimente da sua época, colocando em locus horribilis, de uma forma primorosa, a hierarquia colonial, isto é, a colónia, o colonizador e o colonizado.
INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES
«Além do quarto em que estamos e do outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais duas divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tem as paredes enegrecidas pelo fumo, porque dantes a Mamã tinha ali o fogão a um canto. E ocupada por uma mesa já despolida e sem estilo, rodeada por 7 cadeiras, uma de cada espécie, um armário em que alguém escreveu «Elvis», e vários sacos no canto, atrás da porta.
(…)
A sala de visitas tem uma parede comum ao quarto em que estamos e a outra ao quarto em que está a Mamã. Além da porta que dá para a varanda, tem outra que dá para um quartito a que chamamos corredor, para onde também dão as portas deste quarto, da sala de jantar, do quarto da Mamã e da casa de banho. Acho que a Mamã tirou o fogão da sala de jantar por causa do fogo, embora as paredes já estejam todas negras. Talvez fosse porque as paredes do corredor e dos quartos começassem a enegrecer também. Agora a Mamã cozinha numa palhota que se construiu a um canto do quintal. Apesar de se ter mudado para lá há bem pouco tempo, a palhota está quase negra, tanto por dentro, como por fora. Agora deve lá estar a dormir o Madunana. A palhota não tem nada a vedar a entrada.
O Totó deve lá estar a dormir também. Não o ouço a ladrar.» (pp. 55 – 56)
No segundo conto, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, a casa do nosso narrador (um menino, de novo! Lá pela frente descobriremos que o personagem já nos é familiar) é um verdadeiro arrolamento de compartimentos, imóveis e gente.
Curto e sublime, “Inventário de Imóveis e Jacentes” é um verdadeiro espetáculo de descrição físico-geográfica.
DINA
«O Capataz descansou as mãos nas ancas e soprou uma breve gargalhada: - Mas o que é que tens, rapariga? Não queres o dinheiro? Tens medo de o receber? - Calou-se, aguardando a resposta da Maria. Mas continuou: Tens medo que os rapazes descubram que és uma puta?
Maria abraçou-se mais apertadamente e, cravando as unhas nas costas, choramingou:
- Madala viu nós... Madala viu...
- E o que é que isso tem? - O Capataz abriu os braços, reforçando a admiração, e depois cruzou-os sobre o peito.
- Madala é minha pai!... - Maria cuspiu as palavras com raiva.
Os homens do acampamento, direitos como estacas, perscrutavam a cara do Capataz.
Esquartejaram-no silenciosamente.
- O quê?! - articulou por fim o Capataz. A cara amarela tingia-se-lhe rapidamente de sangue.
- Eu não sabia que eras filha do Madala... - gesticulou asfixiado. Eu não sabia... palavra de honra, Madala, palavra que não sabia... eu não sabia que tinhas uma filha... tão bonita... eu... sou amigo dela...
O silêncio dos homens do acampamento latejava de tensão.» (p. 74)
O protagonista da vez é Madala, assim chamado provavelmente pela sua já avançada idade. Trabalhador em uma plantação de milho, o homem se vê tirado a sua dignidade como pai pelo sistema opressor. Aliás, não só a dignidade dele, mas a da sua filha Maria, a do Capataz e a de todos os homens da machamba.
Uma história melancólica, revoltante e revelador de um terrível mal que era a colonização.
A VELHOTA
«Sentada na esteira a velhota estava quieta, a ver os miúdos a comer. De vez em quando levantava-se um e vinha trazer-lhe o prato de alumínio para ela servir-lhe mais. Foi de uma dessas vezes que a velhota deu comigo. Estava com a colher de pau erguida, cheia de arroz, e ia despejá-la no prato, quando parecendo lembrar-se de qualquer coisa, se virou para a porta. Logo que me viu espreitou para o fundo da panela e perguntou-me se queria comer.
- Ainda não sei se quero comer ou não - respondi.
Virou-se para o lume, demorou-se um bocado a olhar para as chamas com a concha ainda no ar e depois perguntou:
- Estás zangado? Estás tão zangado que não podes comer e nem sabes se queres ou não?...
- Não, não estou zangado.
A velhota pensou ainda um bom pedaço e resmungou:
- Então está bem, se não estás zangado...» (p. 80)
A tal velhota do conto é a mãe do narrador. É uma mãe que nutre muito amor pela sua prole.
"A Velhota" é um conto deleitoso, com personagens carismáticos e um enredo excelso. Enfim, uma linda história de uma família que, apesar do momento conturbado em que vive, não deixa der ser feliz.
PAPÁ, COBRA E EU
«Comecei a tirar os blocos um por um. Quando tirei o último bloco de uma rima, vi a cobra. Era uma mamba de cor muito escura. Quando se sentiu descoberta enroscou-se um pouco mais apertadamente e levantou a cabecita triangular. Os olhitos brilhavam apreensivos e a língua negra e bífida palpitou ameaçadora. Recuei até sentir nas costas a rede do cercado e depois sentei-me no chão.
(…)
Encurralada ao fundo do vão da rima de blocos, a mamba alargou o seu corpo de maneira a apoiar-se o mais solidamente possível. A cabeça, assente sobre o pescoço esguio, manteve-se fixa no ar, alheia ao movimento do resto do corpo. Os olhitos luziam como brasas.» (pp. 93 – 94)
O protagonista-narrador do segundo conto (como dito antes, um personagem que já nos era familiar) volta neste “Papá, Cobra e Eu” para nos contar da mamba negra que assolava a capoeira na calada da noite.
Cativante e envolvente, “Papá, Cobra e Eu” é um dos contos mais interessantes da colectânea. Coeso e, acima de tudo, com uma trama bem-acabada.
AS MÃOS DOS PRETOS
««Deus fez pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já os não pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem, é apenas obra de homens... Que o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juizo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos».
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fugi para o quintal , para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.» (p. 102)
No sexto e penúltimo conto, o narrador (um menino, de novo!) questiona o facto de "as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo" (p. 102). E assim ele vai ouvindo as mais variadas e diferentes opiniões acerca do assunto.
O conto é comovente, lindo e, à semelhança do quarto conto, tocante. Honwana trabalha com descriminação e preconceitos raciais de uma forma estupendamente interessante.
NHINGUITIMO
«(…) Então chega o «nhinguitimo».
Nuvens apressadas escapam-se dos montes Libombos, e, descendo a encosta, atravessam o vale. O vento da poeira cessa e recolhe à profundidade das matas do outro lado do rio. O ar pára; os bichos buscam as tocas e as micaias nuas retalham firmemente o céu cinzento.
De repente, o «nhinguitimo» irrompe pelo vale e varre instantâneamente a poeira que enche o ar. Célere, vasculha as matas, derruba os pés de milho e dobra as micaias, que gemem de aflição.» (p. 106)
À semelhança do que acontece em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, a narração descritiva ganha uma acentuação mais significativa neste último conto.
“Nhinguitimo” é denunciador de injustiças sociais perpretados pelo sistema colonial. Este "nhinguitimo" natural, uma depressão tropical, é acompanhado por outro "nhinguitimo", que tem mãos brancas por detrás, que avassala a pacata vida do batalhador Vírgula Oito.
Por último, “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” é uma obra à frente de seu tempo, daí a sua intemporalidade. Para uma obra de estreia, Luís Bernardo Honwana revelou-se um escritor excepcional.
Honwana, através de figuras de diferentes status sociais, retrata o sarnento, repelente e cruel quotidiano de Moçambique sob a dominação e exploração do colonialismo português, portanto, dando-nos uma visão geral de como se (sobre)vivia naquela época.
No campo narrativo, afigura-se-nos que as estórias de “Nós Matámos o Cão-Tinhoso” têm um denominador comum: o narrador. Ora autodiegético, ora heterodiegético. Mas que, na maioria dos casos, é a mesma entidade em diferentes fases da sua vida. Isto vai-nos sendo revelado à medida que vamos subtilmente descortinando os contos. O efeito, no fim, é catártico.
AVALIAÇÃO: 10/10
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Review by: Manuel Gimo
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