Kalliny 13/07/2022
Nietzsche o anticristo
Nietzsche parece irritado com a religião cristã. Imagino que a leitura de sua biografia, contextualizando o momento da produção de Anticristo, possa fornecer dicas para toda a acidez em suas palavras.
Sobre o livro, não há novidades em relação ao seu pensamento, exceto a concentração e foco no surgimento, evolução e difusão do cristianismo. Este surgiu como recurso dos indivíduos oprimidos, os quais criaram uma religião que louvasse a situação destes em oposição aos que dominavam. O Deus cristão reflete esse ideal, com passagens pouco amistosas para os ricos e poderosos. Seria a moral dos escravos em detrimento da moral dos nobres.
Nietzsche afirma que o cristianismo é a religião dos decadentes, humanos desafortunados, sem perspectiva de melhorarem suas vidas, mas que encontraram nessa moral uma forma de reverter o cenário. E conseguiram. Com a difusão do cristianismo, os seus valores se tornaram traços indeléveis na construção das sociedades, como o princípio de que "todos são iguais perante a Deus". Tal princípio guiaria discussões políticas culminando no princípio de "direitos iguais para todos". Olavo de Carvalho também analisa e descreve essa relação no livro O Jardim das Aflições.
Mas dentro do , essa nova concepção de tratar os indivíduos é problemática para o desenvolvimento do homem. O filósofo é a favor da , algo que com certeza soa anacrônico para os dias correntes. Entretanto, faz sentido dentro do mundo de Nietzsche. Com a desigualdade de direitos, forjada e mantida pela natureza, os indivíduos se distinguiriam por características inatas, seguindo a marcha da teoria evolucionista de Darwin. Lembrando que Nietzsche acreditava no , aquele que conduziria a humanidade para novos horizontes.
O cristianismo teria quebrado esse processo, defendendo a igualdade entre todos. Uma das ferramentas para isso foi colocar a como uma de suas principais virtudes. Levada até as últimas consequências, argumenta Nietzsche, a compaixão aumentaria o sofrimento na Terra, pois além dos nossos próprios infortúnios, sofreríamos pelos dos próximos.
Outra questão muito alardeada é o e que teria motivado os cristãos a erguerem a religião. Incapazes de revidar as ofensas que sofriam e a reverter a situação na qual se encontravam, resolveram alterar a moral, a consciência, minando o antigo sistema de valores. Neste ponto, socialistas e anarquistas também sofrem ataques, porque seriam correntes que buscariam gerar inveja no povo. Difundir o ressentimento.
Há comparações do cristianismo com o budismo, análise do comportamento de Jesus e de Paulo, e como o cristianismo influencia a forma como interpretamos o mundo. Como os demais livros, essa obra ajuda a questionar vários pontos de vista que são tomados como dados.
A acidez nas críticas (uma raiva latente em cada linha) poderia ter sido amenizada, todavia, talvez tenha sido intencional do próprio autor. Eu particularmente não gosto muito quando uma obra visada para análise tem esse tipo de recurso. Mas é questão de preferência.
Nietzsche busca não só criticar o cristianismo visando superá-lo, mas como também superar o sistema filosófico platônico ? e, com isso, ? toda a filosofia ocidental. Sua crítica parte da ?ética? por trás dos valores cristãos, que valorizam aquilo que não permite o crescimento da vontade de potência do homem e de sua afirmação enquanto ser no mundo. O autor vai além: o cristianismo, o platonismo e toda a filosofia ocidental existem para travar o crescimento da vontade de potência do forte ? a única arma dos fracos contra os fortes é a valorização do primeiro contra o segundo.
Por fim, por mais controverso que seja Anticristo, ele ajuda a conectar as outras obras e a clarear a forma como Nietzsche pensava. Continuo, porém, com o mesmo ceticismo: acho que o mundo de Nietzsche não seria factível.