André 24/10/2012Sombrio, complexo e realista: Um clássico. A Companhia Negra, de Glen Cook, é mais um desses casos difíceis de entender o motivo de nunca ter chegado por aqui antes. Se trata de um clássico da fantasia, um dos livros mais influentes do gênero. Uma obra de calibre grosso e que chegou ao Brasil, finalmente, pelas mãos da Editora Record.
No livro somos apresentado a história de uma irmandade de mercenários e se inicia em um momento de sua decadência. Presa como exército particular de um governante que logo cai em um lugar sem muita importância, a Companhia é contratada por Apanhador de Almas, um poderoso feiticeiro e integrante dos Dez Tomados, líderes e emissários dos exércitos do Império nortista da Dama, uma feiticeira que parece ter retornado dos mortos, para lutar e defender o império contra os Rebeldes. A Companhia logo se vê no meio de sujas e mortais disputas políticas entre os Tomados, e seus conceitos morais são postos a prova sucessivamente. As disputas e os acontecimentos são apresentados por intermédio de Chagas, médico e analista da Companhia, de forma sucinta e militar.
Mas mesmo que seja um livro repleto de disputas politicas, seu foco não são os poderosos reis, os tomados ou mesmo a Dama. São as consequências desses jogos políticos para aqueles que estão na linha de frente da batalha. Os que irão morrer primeiro. Ou seja, a Companhia Negra, o exército contratado, os mercenários. A Companhia é a família dessas pessoas, e elas não possuem nada fora dela. São órfãos, viúvos, rejeitados. É a ralé da ralé, os sujos, os mal vistos em todos os cantos. É onde alguém só vai quando não existe mais nada para ela. Mesmo cada um deles sabendo disso, precisando lutar, literalmente, para sobreviver, metidos em problemas que vão além de suas capacidades, a Companhia cumpre seus contratados, mesmo que, às vezes, use formas tortuosas para isso. Não lutam por liberdade, política ou ética. Isso são atitudes dos rebeldes. A Companhia luta por dinheiro.
Dito assim, até faz parecer com que os rebeldes são os mocinhos sem tirar nem pôr, e o império/Companhia, os vilões, e é um dos grandes méritos do livro em lidar com isso o tempo todo. Mesmo que, em teoria, a Companhia seja um bando de vilões, é difícil não gostar de personagens tão humanos e fascinantes. O mundo não é tão preto no branco. As guerras não são com um lado o bem, e o outro o mal. Valores éticos são muito mais cinzas do que isso. Não importa o lado, em uma guerra, ambos se apegam a valores falsos para justificarem a frieza de suas ações. São em assuntos assim, principalmente, que percebemos a força do personagem Chagas. Suas divagações filosóficas, expõem que mesmo os mocinhos, os que dizem lutar pela liberdade, são capazes de atrocidades, fazendo delas costumeiras, parte de suas rotinas. Que do lados dos vilões, também há aqueles incapazes de não terem estômago para certas barbaridades. Também sentem a dor da perda. Não que os vilões não sejam tão cruéis quanto os mocinhos.
Muita gente diz que os livros poderiam ser maiores. Sempre me incomodo quando vejo alguém dizendo que esse ou aquele livro poderia ter cem páginas a mais ou, talvez, cinquenta a menos. Se isso ocorresse, os livros não seriam os mesmos. No Caso de A Companhia Negra, no entanto, é compreensível os motivos de sempre apontarem para isso. Livros épicos, de forma geral, são excessivamente descritivos com suas campanhas e tudo o mais. Já na obra de Glen Cook, ocorre o contrário.
Não há grandes descrições tediosas sobre caminhadas ou viagens, por exemplo. Na realidade, acontece muito de terem várias “lacunas” de um ponto para outro. Lacunas que se fossem preenchidas, acrescentariam fáceis duzentas páginas. Mas veja bem, isso não é um ponto totalmente negativo. Torna, sim, o início muito mais difícil do que poderia ser, visto que estamos em um mundo ficcional do qual não sabemos nada. Mas ao fazer isso, Cook não só faz a história fluir melhor, como deixa muito mais crível. Afinal, nós estamos conhecendo aquele mundo através de um relato para os Anais da própria Companhia escrito por Chagas. Há momentos que são desnecessários em uma história dessas. Quando a batalha é importante, e não uma briga no meio do nada, elas aparecem e são estupendas. Glen Cook demonstra uma habilidade incrível ao nos narrar batalhas com precisões militares tão eficientes e reais.
O universo é complexo, velho, sombrio e decadente, e tem a magia como algo natural e sempre está lá, mas há poucas informações para o leitor se orientar dentro dele. A escrita de Glen Cook não ajuda, sendo abusiva com frases curtas e, às vezes, muito confusa. Mas ao tempo em que vamos nos acostumando, tando com o universo, tanto com o estilo de escrita do autor, a obra flui e vai em uma única tacada.
As comparações com a saga de George R.R Martin, “As Crônicas de Gelo e Fogo” e “Senhor dos Anéis“, são inevitáveis. Alguns até falam, após lerem a sinopse, que parece um genérico cópia de Guerra dos Tronos. Não é. A Companhia Negra foi primeiramente publicado em 1984, doze anos antes da primeira história de Westeros, e o realismo sobre os jogos políticos tão elogiados nas obras de Martin, vão além aqui, são ampliados e tratados ainda com maior complexidade. Ao passo que a história da Companhia é uma das principais em um dos movimentos literários mais interessantes da fantasia, daqueles que se opuseram contra o discurso maniqueísta de “bem x mal” da obra de Tolkien, também é uma influência óbvia para as histórias de Westeros – principalmente no movimento em si.
Mais sombrio do que qualquer guerra de tronos, mais complexo do que qualquer disputa por um anel, A Companhia Negra não é somente um clássico do gênero que enfim chega por esses lados, como um dos melhores lançamentos do ano. É daquelas sagas que mesmo antes de você terminar o primeiro livro, já se considera fã de carteirinha.
O segundo volume já tem a previsão para ser lançado no primeiro semestre de 2013, e, da minha parte, já estou ansioso. A história aqui no primeiro é boa, mas a impressão que ficou, é que o grande momento ainda está por vir. Que tivemos apenas uma pequena amostra do que nos aguarda.
Um livro indicadíssimo para qualquer fã do gênero, mesmo que seja apenas pela curiosidade em ler algo tão importante. Mesmo que apresente alguns problemas nesse primeiro momento na contextualização do universo perca um pouco até nos acostumarmos com a escrita e que alguns pontos do final sejam óbvios para quem está familiarizado com esse tipo de história, se trata de uma leitura que pode, até mesmo, ser considerada essencial para leitores de fantasia.
Resenha originalmente publicada em: http://www.sincopedigital.com.br/2012/10/resenha-a-companhia-negra.html