Ana 04/06/2016
Este é um dos meus livros favoritos. Eu o li pela primeira vez este ano e agora, pouquíssimo tempo depois, cá estou eu lendo-o de novo. Ele me deixou encantada, horrorizada e depois encantada de novo.
Para que se tenha uma ideia do tamanho desse encanto: sei a primeira página de cor. Consigo recitá-la de cabeça, com todas as devidas pausas, entonações e arroubos teatrais necessários. Sempre vou me lembrar da primeira vez em que a li. Minha reação foi uma mistura de choque, encantamento, diversão e uma vontade louca de ler os diálogo em voz alta para que os meus amigos pudessem rir junto comigo (foi graças à essa vontade, ainda não suprida exatamente, que decorei o trecho). O começo é engraçado, tanto pelo diálogo quanto pela linguagem utilizada, mas pouco a pouco - ou de repente, num choque - percebe-se que Rubem Fonseca não quer nos fazer rir. Ele apenas quer nos mostrar a realidade, como ela é. Aliás, ele não quer nos mostrar, ele nos mostra. Se você enxerga ou não, é problema seu. A arte não tem a função de educar, ela só serve para existir.
Gosto muito de todos os contos (menos de "74 degraus", que achei um saco). Os meus favoritos são "Corações solitários", 'Dia dos namorados", "Intestino grosso", "O outro", "Botando pra quebrar" e "Feliz ano novo", este último só por causa do diálogo/cena inicial que tanto me encanta. Ah, tem também "O campeonato", que achei genial.
"Corações solitários" é narrado por um ex-repórter de polícia que arranja emprego num jornal feminino todo escrito por homens (!). "Dia dos namorados" é, acho, o primeiro conto em que aparece Mandrake, um personagem muito bom que, pelo que descobri, aparece em muitos outros livros do Fonseca. "Intestino grosso" é uma entrevista com o Autor, que fala sobre pornografia, literatura, marginalização, canibalismo e um conceito que li pela primeira vez e achei genial: a pornografia da morte. Segue trecho:
"(...)À medida que a cópula se torna mais mencionável e o seu coro de menininhas entoa nos estádios de futebol cantigas com palavrões da velha pornografia, vai sendo escondida uma coisa cada vez menos mencionável, que é a morte como um processo natural, resultante da decadência física, que é a morte pornográfica, a morte na cama, pela doença - e que se torna cada vez mais secreta, abjeta, objecionável, obscena. A outra morte - dos crimes, das catástrofes, dos conflitos, a morte violenta, esta faz parte da Fantasia Oferecida às Massas pela Televisão hoje, como as histórias de Joãozinho e Maria antigamente. Está surgindo, pois, uma nova pornografia (...)."
Eu adoraria falar sobre todos os contos, como fiz na resenha original, mas aí o texto ficaria cheio de spoilers; não quero falar demais sobre o livro para não estragar a experiência de quem ainda não o leu. "Feliz ano novo" foi censurado durante a ditadura, é uma grande pena que isso tenha acontecido, mas é ótimo saber que hoje ele está disponível. Creio que o humor, o absurdo e o linguajar da obra podem atrair muitos leitores, que, como eu, não sabiam ser este um livro possível.