Andreia Santana 15/01/2011
Alegoria extraterrestre sobre a intolerância
O escritor C.S.Lewis é mundialmente conhecido graças ao sucesso no cinema das adaptações de seus contos infanto-juvenis As crônicas de Nárnia. Mas, o autor, antes de publicar, nos anos 50, as famosas Crônicas, criou uma pequena obra-prima, lírica e filosófica, que revela poesia desde o título: Além do planeta silencioso (Ed. Martins Fontes, 2010).
Primeiro livro da Trilogia Cósmica, Além do planeta silencioso é de 1938 e funciona como metáfora para o período tenso pré II Guerra Mundial, quando na Europa proliferavam os governos totalitários. É também uma alegoria religiosa, com foco nas crenças cristãs, mas com uma base solidamente fincada nas mitologias celta e nórdica.
Nessa fábula mais adulta, o autor discute a intolerância, preconceito, opressão; o avanço da tecnologia bélica e até cria metáforas que tanto servem para descrever o anjo caído Lúcifer, que teria “entortado o mundo”, quanto Hitler, que teria “entortado a Europa”.
O livro conta a história do filólogo Elwin Ransom, um pacato professor universitário que tem como passatempo fazer longas viagens a pé pelo interior da Inglaterra. Por uma sucessão de fatos, Ransom é seqüestrado por dois homens: o cientista Weston e o magnata Devine, e embarcado numa nave espacial para o planeta Malacandra (Marte).
Nessa primeira parte da trilogia, C.S.Lewis não perde tempo descrevendo batalhas espaciais ou engenhocas tecnológicas dignas de Júlio Verne e H.G.Wells, autores que povoaram sua infância. O interesse do autor é utilizar esse mundo desconhecido e que se extingue, com paisagens exóticas e desoladas, para mostrar a evolução espiritual do protagonista e levá-lo através de alegorias, a questionar, analisar e, finalmente, aceitar a existência de uma grande força espiritual em regência ao universo.
Supremacia racial - A estranheza que os habitantes de Malacandra causam em Ransom, que num primeiro impulso considera os nativos como selvagens aculturados, é o grande discurso moralizante da obra de Lewis e sua bandeira contra os ideais racistas do nazi-fascismo. Weston e Devine, inclusive, personificam dois males da civilização moderna: a ganância que quer extrair todas as riquezas dos mais fracos (capitalismo predatório e selvagem); e o conquistador que quer dominar e extinguir os considerados inferiores (como o arianismo proposto por Hitler). Weston, que é o cientista que desenvolveu a nave especial para "conquistar" Malacandra, seria ainda um avatar de mente brilhante colocada a serviço do mal.
A necessidade de Ransom em racionalizar tudo o que vê nas paragens “estrangeiras”, traçando paralelos com a cultura da Terra (leia-se a cultura ocidental), mostram que o objetivo do autor é usar a obra também como alerta contra o preconceito e as ideias de superioridade e pureza racial que proliferavam na Europa no período entre guerras.
Em algumas passagens, abertamente critica os ideais colonialistas e suas crenças “no fardo do homem branco”; ou seja, “o peso da civilização” e as “obrigações dos povos culturalmente superiores para com os inferiores”, o que fatalmente leva a dominação e extinção dos últimos.
Ransom, que não pode evitar ser fruto do seu meio, embora comece a amadurecer durante a experiência extraterrestre, aprende que em Malacandra, as raças diferentes convivem numa harmonia que transcende as diferenças físicas ou culturais, dando a ideia de um “paraíso bíblico”. Ele percebe também que uma raça não precisa dominar ou mesmo diluir a outra e que não existe uma hierarquia que divide os povos entre superiores e inferiores.
Viajante involuntário, mas depois admirador dos habitantes de Malacandra na mesma proporção em que percebe que o inferior é na verdade o animal humano e suas políticas de exclusão, Ransom entende porque, para a civilização malacandriana, a Terra é conhecida como o “planeta silencioso”. E aqui, alguns trechos da obra se assemelham a história de Nárnia, pois o “mal” (seja na figura de demônios ou na do nazismo), ao invadir a Terra, isolou-a e apartou-a da grande harmonia celestial que manteria a ordem no cosmos.
A narrativa do escritor mescla o lirismo e a retórica. O tom dos textos, principalmente nas passagens de maior peso religioso, lembra uma pregação, mas não do tipo enfadonha. Antes, utiliza-se de encadeamentos lógicos e deduções inteligentes para seduzir o leitor e convidá-lo ao livre-pensamento. Mesmo quando abertamente fala do Deus cristão, chamado “Maleldil” na história, o autor convida mais a uma reflexão filosófica sobre religiosidade do que para uma conversão propriamente dita.
Considerada uma das obras-primas da literatura inglesa, Além do planeta silencioso pode não encantar tanto aos leitores mais afeitos a aventura pela aventura quanto as fábulas protagonizadas pelo leão Aslam, mas cria uma boa expectativa em relação ao restante da Trilogia Cósmica e oferece outra perspectiva da fantasiosa imaginação de C.S.Lewis. As questões morais, marca registrada dos livros dele, prevalecem, mas num tom menos profético e mais humano.