spoiler visualizarJackson.Silva 02/10/2016
Ler este livro com os óculos da ideologia política que reina em você (direita/esquerda) é pedir para se ofender. Se você ler buscando conforto ideológico o problema é seu.
O autor desagradou parte da direita e parte da esquerda (a ala preguiçosa desses setores que não se aprofunda nos temas). Logo, ganhou meu interesse e respeito: Quando eu vi resenhas na internet e vídeos no Youtube sobre ele, constatei que alguns comentaristas chamavam o autor de fascista pelo fato de nominar o golpe ora como golpe, ora como revolução. Esqueceram-se de que quando ele se vale da palavra revolução estava apenas repassando como os fatos lhe foram narrados, ou na forma como foram extraídos de documentos do governo da época e dos jornais favoráveis à ditadura e/ou deposição de Jango.
Esqueceram-se de consultar o dicionário e ver que a palavra revolução em si é neutra, cabendo a quem a utiliza lhe dar sentido positivo ou negativo. Estes também odiaram a utilização da palavra terrorismo, sem se aterem ao fato de que o autor chamou assim os atos de violência dos dois lados, pois esta era a palavra utilizada na época e tomou o cuidado de diferenciar o ?terrorismo? no período de exceção do terrorismo real e presente no conceito internacional que conhecemos (v.g. Estado Islâmico/terror contra a população civil), inclusive defendendo que a luta armada não era bem um terrorismo e se tratava de um ?terrorismo de defesa? contra um Estado ditatorial, minimizando a demonização no uso da palavra. De outro lado, constatei que outros comentaristas reacionários chamavam o autor de comunista pelo fato dele não esconder os motivos da deposição de Jango e não deixar de lembrar, com detalhes e fontes, as atrocidades, mortes e torturas do período, confirmando que o que chamavam de revolução foi sim um período de exceção e ditatorial.
Técnico, como um bom livro narrativo de fatos históricos tem que ser, ele não se preocupa com os efeitos e sensações que causará no leitor. Apenas narra o resultado de uma excelente pesquisa.
Você não fica com dúvidas sobre de onde surgiu o que o autor está narrando, sempre tem a fonte ou o documento citado (que pode ser visualizado no site do livro).
Renata Lo Prete (jornalista, fez um vídeo sobre este livro) tinha razão quanto à humanização dos personagens, não no sentido de tornar doce e humana a ditadura, pelo contrário, mas pelo fato de que o autor colheu parte dos fatos com os generais que presenciaram o início e ajudaram a encerrar esse período. Documentos foram fornecidos pelo próprio Golbery, braço direito de Geisel (foi presidente militar), duas figuras que ajudaram a armar e desmontar a ditadura. Poderia se chamar o livro dos bastidores da ditadura, pois relata até mesmo reuniões documentadas dos generais.
O livro não esconde a sandice e os abusos do início do regime, instalado sob o pretexto de propiciar uma pretensa revolução e impedir uma suposta ditadura comunista, ideia esta que era resultado muito mais de loucuras conspiratórias do que risco de fato (ranço que ainda persiste na ala conspiratória da atual extrema direita que confia em astrólogo youtuber que se diz historiador e que seus seguidores alegam sempre ter razão). Chegou-se ao ponto de acreditar nas histórias de um preso político comprovadamente esquizofrênico que alegava ser um agente soviético. Prisões e torturas foram efetuadas com base nesse testemunho.
O apoio dos EUA é explícito no livro, tudo se dava de forma reservada. Os documentos e conversas assustam sobre o fato de como a guerra fria levou os EUA a se meterem em outros países por causa do medo do comunismo. Há registros de apoio, caso fosse necessário, de fornecimento de dinheiro, armas, gasolina e até invasão militar (operação Brother Sam) para garantir o sucesso do golpe e evitar que os militares que defendiam Jango criassem empecilhos ou que o golpe não se concretizasse, o que foi abortado em razão da desnecessidade e pelo fato do EUA ter reconhecido o ?novo governo brasileiro?, mesmo que o Presidente eleito e deposto ainda estava em território nacional. As trocas de informações do embaixador Gordon com o governo dos EUA chocam, especialmente o pedido de apoio militar aos golpistas da época. Em um documento sobre a conversa do embaixador e do presidente Kennedy (o presidente americano gravava todas as suas conversas e ligações) ficou acordado que eles interviriam apenas para fortalecer a ?espinha militar? brasileira e desde que ficasse claro o motivo do apoio ser contra a esquerda e contra os comunistas.
Por outro lado, o livro também não esconde as ligações da extrema esquerda com guerrilhas revolucionárias, nem o apoio técnico e financeiro, ainda que pequeno comparado ao porte do Estado ditatorial, fornecido por revolucionários latinos e cubanos para possibilitar a luta armada contra o regime. Pela cronologia dos fatos a esquerda se armou após o endurecimento do regime. Tem uma passagem onde o Governador Carlos Lacerda em protesto na frente da sua casa por causa da proibição, por ele imposta, de uma peça de teatro enfrenta os artistas e diz: ?se querem fazer revolução, peguem em armas!?. O pedido foi atendido e o setor radical da esquerda se armou, pois entendia que não se combate ditaduras com flores. Ocorreu um rachão com a esquerda pacífica que não queria pegar em armas.
Diante do endurecimento inicial do regime, ocorreu curiosa migração de pessoas de direita e inicialmente a favor do regime, inclusive militares que foram inativados pela ditadura e ficaram fadados a clandestinidade, para o centro e depois para a esquerda armada, passando a lutar contra o regime de exceção.
O livro não esconde o início das torturas, perseguições e mortes, mas também não esconde o revide da esquerda armada e dos atentados com bombas e assaltos a bancos para custear seu aparato revolucionário e a compra de fazendas a fim de possibilitar a articulação de uma resistência armada ? construção de uma guerrilha armada nas áreas rurais para combater a ditadura nas cidades.
Chocante o relato da origem da passeata dos cem mil: violência policial contra estudantes e a prisão deles em um estádio, onde foram agredidos e humilhados por agentes do Estado que os deitaram no chão, os chutaram e mijaram na face deles.
O livro também relata o curioso ?fenômeno do ?suicídio? de presos políticos? que ocorria em quartéis. Um dos relatos, confirmados por militares, mais interessantes é uma ?aula? sobre como fazer torturas, na qual um grupo de presos políticos foi levado a um grupo de militares e torturados na frente dos ?alunos?, sendo reservada a cada preso uma modalidade de tortura (choque, pau de arara, palmatória, subir em latas para que o peso do corpo provocasse dor nos pés, etc.) e declarado que o intuito não era matar, mas levar à exaustão física e psicológica a fim de obter informações. Limite este que foi esquecido muitas vezes e levou ao ?suicídio? (leia-se morte causada por agente do Estado) de presos políticos.
Por motivos de ordem cronológica, esses assuntos são mais desenvolvidos nos outros livros, que eu ainda não li. Este primeiro trata do período de 64 a 68, da queda de Jango e sobre os Governos militares Castello Branco e Costa e Silva.
Lindo o movimento estudantil da época. Comovente a morte do estudante Edson Luis, morto pela PM com um tiro no peito por protestar em razão do aumento da comida no restaurante universitário, comovente a passeata com o corpo dele até a ALERJ.
Interessante os conflitos que originaram o primeiro Ato institucional: atritos entre as Forças Armadas, o STF (que concedia HC aos presos políticos e irritava os generais, chegando ao ponto de ameaçar um general de prisão por não cumprir uma ordem de soltura) e o Congresso.
Instigantes as reuniões documentadas sobre o AI-5, onde se discutia a dúvida sobre endurecer o regime com um novo AI ou decretar estado de sítio.
Interessante a descoberta de que naquela época já existia um MBL (IPES) e que o que derrubou Jango foi a sua pauta reformista em favor dos menos abastados, em especial a reforma agrária.
Tem a narrativa do Castello Branco cedendo a tentação do autoritarismo e prolongando a ditadura, contrariando a sua promessa de que faria um governo transitório e que logo devolveria a democracia ao povo. Ao invés de devolver a democracia entregou mais três atos institucionais (AI-2, 3 e 4).
Tem os fatores econômicos e políticos da época. Tem as mazelas e os fatos sociais, regionais e mundiais. Tem fotos. Tem Marighella, um parágrafo sobre a prisão de Dilma (bem pouco desta, o último livro abrange os presos políticos vivos com mais afinco). Tem muita coisa interessante no livro que não cabe aqui.
Você se sente dentro do gabinete do presidente, do militar, do embaixador, junto com a esquerda armada, vivendo na época, etc.
Os capítulos não são tão cronológicos. Eles são cíclicos. Por exemplo, nos capítulos ?a esquerda se arma? e ?a direita se arma?, da metade para a frente do livro, o autor relata todos os fatos que levaram a isso, retornando a 64 e narrando o ocorrido até chegar em 68.
Daqueles livros que você relê de tempos em tempos de tão rico que ele é em informação.
Enfim, o livro é fantástico.