Lucas 04/07/2023
Comicidade, narrativa episódica e simbolismo social: um suco de Jorge Amado
Não há o que discutir: Jorge Leal Amado de Faria (1912-2001), baiano de Itabuna foi o escritor brasileiro que mais bem uniu qualidade e quantidade dentro de uma carreira literária. Foram quase quatro dezenas de obras e praticamente todos os seus 23 romances possuem um apelo popular que transcende a simples leitura de seus livros, graças ao proporcional número de adaptações feitas a partir deles. As atrizes Sônia Braga ou Juliana Paes, engatinhando sorrateiramente num telhado (em cena baseada no livro Gabriela, Cravo e Canela, de 1958) ou Betty Faria num carro vermelho chegando à Santana do Agreste (na novela Tieta, de 1989) são imagens inesquecíveis até mesmo para quem nunca leu nada na vida.
É do alto desse pedestal que Jorge Amado é avaliado pela história da literatura brasileira. Dono de um estilo narrativo simultaneamente descompassado e prolixo e com forte apego ao sensual (seja em termos de comicidade ou de tragédia), o autor é capaz de despertar o lado pessoal de cada leitor: se alguns elementos de suas obras talvez não tenham envelhecido tão bem ou se há exageros no tratamento dado à sexualidade de uma forma geral, seu legado precisa ser respeitado e valorizado pela sua escrita folclórica e predominantemente hilária.
Tocaia Grande, um dos seus últimos romances, lançado em 1984, é uma síntese bem equilibrada de todos estes elementos. Escrito aos poucos durante cerca de cinco anos, o livro trata da história de Irisópolis, cidade fictícia do sul da Bahia. As primeiras linhas vão tratar da festa de 70 anos de surgimento do município, mas Amado quer contar não o presente, mas o passado misterioso daquele lugar (não acidentalmente, "A Face Obscura" é o subtítulo da obra). Assim, ele volta no tempo e vai largando em suas páginas humor, sensualidade e personagens cativantes; tudo se une em torno de um objetivo bem mais sério: contar a origem e formação de uma cidade tipicamente baiana do interior nos idos do século XX (e que dada a vastidão do pais àquela altura, apresenta realidade similar a muitos outros locais do interior do Brasil).
Antes de Irisópolis, havia Tocaia Grande: é desse mote, que termina o prefácio, que a narrativa começa. No descampado que vai dar origem a um ponto de pernoite de tropeiros, o ex-jagunço Natário da Fonseca indica a seu patrão, o fazendeiro e coronel Boaventura Andrade que aquele era um local muito "conveniente" para que se armasse uma armadilha contra os jagunços de um fazendeiro rival. Homem experiente e experimentado em guerras, Natário administra uma matança no local. Em troca, três coisas: a concessão de uma pequena área de terra sob uma colina, com vista privilegiada do local da tocaia, uma área de terra agricultável nas proximidades e o título de capitão. Capitão Natário da Fonseca, a seu dispor: é esta a alcunha que será dada àquele que mais se aproxima do papel de protagonista nesse romance de voz tão coletiva.
Tocaia Grande vai sendo então descrita em sua gênese e desenvolvimento. Situada num local bonito no interior da Bahia (mais ao sul), as únicas referências geográficas reais são as cidades de Itabuna (frequentemente visitada por personagens do povoado) e a litorânea Ilhéus. Como o local vai virando ponto de descanso de tropeiros, uma pequena estrutura se forma em seu torno: uma "bodega", uma ferraria e, óbvio em se tratando de Jorge Amado, locais direcionados ao prazer.
O círculo das prostitutas é o mais influente em todos os pequenos arcos episódicos que o livro apresenta, o que é uma das mais marcantes características do autor. O âmago da narrativa de Tocaia Grande é povoado por pequenas histórias que se resolvem em si mesmas. Dentro delas, há humor, triângulos amorosos, dilemas peculiares, desilusões e sempre uma ou mais "moças da vida" envolvidas. Por mais que isso seja corriqueiro em se tratando de Jorge Amado, a sensualidade e suas repercussões (a putaria mesmo, com o perdão do termo) aqui é coletivizada: não é apenas uma ou duas personagens femininas que carregam consigo essa abordagem, é uma atmosfera mais plural. E isso é genial porque reduz um pouco o sentimento de repugnância que atinge o leitor mais conservador em outras experiências com o escritor (e nunca se deve esquecer o caráter masculino nisso, que por aqui continua promíscuo e contribui para toda essa atmosfera).
Mas rotular Tocaia Grande como um grande surto coletivo de prostituição é muito injusto porque suas páginas abrigam tipos totalmente inesquecíveis. Além do capitão Natário da Fonseca, falar em Tocaia Grande é também falar do libanês Fadul Abdala. Um sacoleiro de mão cheia, o "turco" era conhecido nas redondezas pelo seu tino comercial vendendo bugigangas. Convencido por capitão Natário do potencial sócio-econômico do descampado, Fadul funda no local uma "venda" para atender as necessidades dos viajantes. Também há o hilário e corajoso Castor Abduim da Assunção, o "Tição", engenhoso ferreiro e descendente de escravos, famoso por suas conquistas femininas, repositório das crenças africanas do livro e que se estabelece em Tocaia Grande fazendo serviços de cutelaria e reparos para os tropeiros.
O "miolo" do livro, conforme já observado, é recheado com pequenos episódios. A origem destes dois personagens, por exemplo, é descrita com o estilo escrachado de Jorge Amado. Além disso, há uma lendária enchente e uma epidemia de "febre sem nome", que assolam o povoado trazendo momentos tristes. Mas ao estar longe da civilização propriamente dita (Tocaia Grande não tinha igrejas ou padres, salvo a passagem de dois missionários quase ao final da narrativa, nem autoridades constituídas), o povo se amparava em si mesmo para a superação de dificuldades.
Jacinta Coroca e Bernarda, as duas prostitutas mais famosas de Tocaia Grande são uma prova disso. Unidas pelos descaminhos de quem se encontra nessa situação, elas desenvolvem uma linda relação de mãe e filha. Coroca, de extensa carreira e ainda requisitada pela sua "habilidade", torna-se a parteira oficial do povoado. Já Bernarda, bela e precoce, era afilhada do capitão Natário e com ele desenvolve uma relação de traços místicos e doentios. Outras, como Diva e Epifânia, também são dignas de registro pelas relações que desenvolvem com outros personagens (em especial com Castor Abduim, pelos motivos previamente imaginados).
A cronologia da narrativa se mistura com a realidade. Um dia, capitão Natário encontra na estrada uma família de migrantes que havia sido expulsa de suas terras em Sergipe, algo corriqueiro nos primeiros anos do século XX. Sensibilizado com a história deles, Natário aconselha a estabelecerem-se em Tocaia Grande, local cheio de terras devolutas, "só chegar e pegar". Lá, os sergipanos fazem roça, criam animais e participam do alvorecer das primeiras produções de cacau, planta típica e símbolo econômico do sul da Bahia. Esse novo "braço" de "tocaiagrandenses" contribui para o fortalecimento do caráter social da narrativa, especialmente no que se refere ao coronelismo e questões agrárias. O futuro leitor que não se engane: Jorge Amado é engraçado por fora e um ótimo contador de histórias, mas por trás disso há todo um desenho social que clama por profundas reflexões adaptáveis a vários pontos mais ermos do Brasil ainda hoje.
O passar dos anos, entretanto, vai aproximando a tal civilização de Tocaia Grande e papel vital nisso possui o coronel Boaventura Andrade. Fugindo um pouco do padrão de Jorge Amado, que trata coronéis e fazendeiros como vilões, Boaventura Andrade funciona como o esteio político da região, o ponto de equilíbrio das forças sociais: os pobres e viventes de Tocaia Grande versus "a lei", que traz consigo a almejada civilização. Uma ruptura trilha o caminho para o desfecho da obra, repleto de uma "poesia taratinesca" (algo bem captado pelo Youtuber Yuri Al'Hanati), imprevisível e apoteótica. Além disso, e diante de toda essa "sede" por ordem e progresso que os "civilizados" possuíam, todo o contexto de Tocaia Grande lembra um pouco Canudos, o arraial (também baiano, mas situado mais ao norte do estado) massacrado pelas autoridades brasileiras no começo da República, entre 1896 e 1897. Pode ser uma impressão muito particular minha, mas percebi muito de Euclides da Cunha (1866-1909) e seu incrível Os Sertões (1902) em importantes momentos de Tocaia Grande. As hipocrisias e insanidades do discurso civilizatório são bem similares às percebidas nas tropas que combateram o movimento de Antônio Conselheiro (1830-1897).
Aglutinando tudo o que Jorge Amado tinha de melhor, Tocaia Grande é um livro extraordinário, seja em sua mensagem social mais oculta ou em sua face novelística, esta mais explícita e que abriga inúmeros momentos inesquecíveis. Sua narrativa é uma ode ao processo de exploração do interior brasileiro, tanto em seu caráter lúdico quanto naquilo que a história natural tratou de chamar de civilização, que esconde dentro de si uma fome depredatória que molda muitas relações ainda hoje presentes nos vastos sertões brasileiros.