Aline T.K.M. | @aline_tkm 01/10/2015ImperdívelLer um clássico muitas vezes me deixa algo ansiosa e me faz sentir incumbida de uma grande responsabilidade: a de captar todas as nuances da obra, de entendê-la e saber enxergar todo o seu valor. Outras tantas vezes nada disso acontece, e a leitura se dá completamente livre de amarras, com uma fluidez que não se deve apenas ao texto mas, principalmente, ao meu estado interno; aí a identificação é quase que instantânea. E foi esta segunda situação que marcou minha leitura de Pergunte ao Pó, livro mais famoso do norte-americano John Fante.
Apesar de não se identificar com o movimento, Fante é tido como um precursor da geração beat e influenciou a literatura de Charles Bukowski (que o tinha como um deus), dentre tantos outros. Inclusive, foi através do “velho safado” – que assina o prefácio do livro, aliás – que Fante começou a ganhar prestígio e foi um dos principais nomes da literatura underground americana dos anos 80.
Pergunte ao Pó traz Arturo Bandini, um jovem aspirante a escritor – um alter ego de Fante. Filho de imigrantes italianos, ele vive num quarto de hotel barato na Los Angeles da década de 30, e passa os dias a caminhar pelas ruas, vivendo e tentando acumular experiências para escrever um livro. Experiência, aliás, é coisa que lhe falta, inclusive no campo do amor. Com um conto publicado, Bandini tem dificuldade para produzir mais; além disso, tem problemas financeiros, se alimenta basicamente de laranjas (a única coisa que consegue comprar) e arrumar um emprego está fora de seus planos. O que Arturo Bandini pretende é viver de literatura, e apenas isso.
É no café Columbia Buffet que ele conhece e se apaixona por Camilla Lopez, em seu guarda-pó branco e “sapatos esfarrapados”. Bandini não aceita estar apaixonado por uma garçonete mexicana – ele próprio carrega certos problemas por ter origem italiana –, o que ocasiona uma série de ofensas e discussões entre os dois. A relação de amor e ódio é uma das frustrações de Bandini já que, apesar de amá-la, a moça ama outro homem.
Difícil não se envolver com o anti-herói ao acompanhar seu cotidiano em Bunker Hill, Los Angeles. À margem da sociedade, Bandini deixa entrever a vida difícil na Califórnia, local onde passou a viver na tentativa de se tornar um grande escritor. Tal como os novos californianos – essa gente desenraizada, triste e vazia – ele tenta ser parte da sociedade e levar a vida na cidade coberta pelo pó do deserto do Mojave.
Bandini é jovem e lhe falta maturidade. Está perdido, não sabe em qual direção seguir e quando a situação aperta além da conta é à mãe que ele recorre, em cartas um tanto otimistas, para conseguir pagar o aluguel e ter o que comer. Por outro lado, Bandini é pretensioso, gosta de esnobar e esbanjar, o que inevitavelmente faz quando tem algumas moedas a mais no bolso. Tempestuoso, o protagonista vai a extremos.
A relação com Camilla, a “princesa maia”, é das mais instigantes. Bandini não se cansa de ofendê-la, e mesmo de humilhá-la, para depois rastejar a seus pés. Dentro de si, tem consciência de que é a origem não americana e a condição social desfavorável o que o irrita nela – características que também Bandini tem em si próprio. O fato é que ele, apesar da ânsia por experiências, é temeroso das coisas da vida, e também das mulheres.
Repleta de pinceladas autobiográficas, a prosa conquista pela agilidade e franqueza. Em primeira pessoa, desfilam ante os olhos do leitor experiências e sentimentos muito pessoais, que ganham forma através do texto ausente de refinamento. O que predomina é a fluidez, um jorrar de palavras que, beirando a imprudência, faz transbordar verdade e sentimento.
Se o entorno parece estático e sem muita vida (empoeirado mesmo), os personagens têm movimento, complexidade, humanidade. E não me refiro apenas a Bandini e Camilla; um dos personagens que mais me chama atenção, aliás, é Hellfrick. O vizinho excêntrico de Bandini costuma perambular vestindo um roupão, vive pedindo dinheiro emprestado, tem mania de gim e desenvolve uma tremenda fixação por carne – seja ela na forma de um suculento bife ou ainda no corpo de um bezerro ensanguentado.
Imperdível, sobretudo para os fãs da literatura beat, Pergunte ao Pó fala das angústias e medos de uma juventude perdida em meio a um sonho americano já desbotado de suas cores. Durante todo o trajeto e a cada dia, a cruel constatação: a imagem daquilo que almejamos ser quase nunca é compatível com a imagem do que realmente somos.
LEIA PORQUE...
Você certamente vai gostar MUITO se: estiver nos seus 20 e tantos anos (ou vinte e todos, como é o meu caso, ou mais), identificar-se com os autores da geração beat, ou simplesmente estiver buscando uma leitura marcante.
DA EXPERIÊNCIA...
Livro simples e, ao mesmo tempo, incrível. Amei o desfecho, não poderia ter sido melhor. Gostei tanto que levei nova injeção de empolgação para ler dois autores que há anos estou planejando ler: Kerouac e Bukowski.
FEZ PENSAR EM...
Trainspotting, de Irvine Welsh. Leitura recente, aí também – só que de um jeito bem diferente – temos um retrato de uma juventude às margens e perdida. Em Trainspotting, vemos um grupo de jovens junkies e sem rumo na Edimburgo dos anos 90.
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