spoiler visualizarEuriano 09/12/2021
Principais pontos do livro "O Problema do Sofrimento"
Esse foi o primeiro livro de destaque de Lewis. Foi o livro que o levou a ser convidado para falar na BBC, na época da guerra, onde as palestras radiofônicas viraram o grande clássio: Cristianismo Puro e Simples.
CAPÍTULO 1
Se você me pede para acreditar que isso é obra de um espírito benevolente e onipotente, respondo que todas as evidências apontam na direção oposta. Ou não há espírito por trás do universo, ou existe então um espírito indiferente ao bem e ao mal, ou então um espírito mau.”
Havia uma questão que nunca sonhei em levantar. Nunca percebi que a própria força e a simplicidade da conjetura dos pessimistas nos apresentam imediatamente um problema. Se o universo é tão mau, ou mesmo quase tão mau, como os seres humanos vieram a atribuí-lo à atividade de um Criador sábio e bom? Os homens são tolos, talvez; mas dificilmente tolos a esse ponto.
A quarta vertente ou elemento é um evento histórico. A afirmação de que houve um homem nascido entre esses judeus que afirmava ser, ou ser filho de, ou ser “um com”, o Algo, que é ao mesmo tempo o terrível assombro da natureza e o doador da lei moral, é tão chocante — um paradoxo, e até um horror, que podemos facilmente ser levados a considerá-la de modo leviano — que apenas duas opiniões sobre esse homem são possíveis. Ou ele era um lunático delirante de um tipo incomumente abominável, ou então ele era, e é, precisamente o que ele disse. Não existe meio-termo. Se os registros tornam a primeira hipótese inaceitável, você tem de se submeter à segunda. E, se você fizer isso, tudo o mais que é afirmado pelos cristãos passar a ser crível: esse Homem, tendo sido morto, ainda está vivo, e sua morte, de algum modo incompreensível para o pensamento humano, realizou uma mudança real em nossas relações com o Senhor “terrível” e “justo”, e uma mudança a nosso favor.
O cristianismo não é a conclusão de um debate filosófico sobre as origens do universo: é um evento histórico catastrófico que se segue à longa preparação espiritual que descrevi, pela qual a humanidade passou. Não é um sistema no qualtemos de encaixar o fato incômodo da dor e do sofrimento: é em si mesmo um dos fatos incômodos que precisam ser encaixados em qualquer sistema que façamos.
CAPÍTULO 4
Quando os apóstolos pregavam, eles podiam assumir, até mesmo em seus ouvintes pagãos, uma consciência real do merecimento a ira Divina. Os mistérios pagãos existiam para acalmar essa consciência, e a filosofia epicurista afirmava libertar os homens do medo do castigo eterno.2 Foi nesse contexto que o evangelho apareceu como boas-novas. Ele promulgou notícias de uma possível cura para homens que sabiam que estavam mortalmente doentes. Mas tudo isso mudou. O cristianismo agora tem de pregar o diagnóstico — em si mesmo, notícias muito ruins — antes que possa ganhar uma audiência para a cura.
Uma é o fato de que, por cerca de cem anos, temos nos concentrado tanto em uma das virtudes — “bondade” ou misericórdia —, que a maioria de nós não tem nenhuma percepção salvo a de que bondade é algo realmente bom, ou nada além de que crueldade é algo realmente mau.
O verdadeiro problema é que “bondade” é uma qualidade fatalmente fácil de atribuir a nós mesmos por motivos bem inadequados. Todo mundo se sente benevolente se nada acontecer para incomodá-lo naquele momento. Assim, um homem facilmente se consola de todos seus outros vícios pela convicção de que “seu coração está no lugar certo” e de que “ele não faria mal a uma mosca”, embora, na verdade, ele nunca tenha feito o menor sacrifício por um semelhante.
A recuperação do antigo senso de pecado é essencial para o cristianismo. Cristo pressupõe que os homens são maus. Até que percebamos de fato que essa sua suposição é verdadeira, embora façamos parte do mundo que ele veio salvar, não faremos parte do público a quem suas palavras são dirigidas. Falta-nos a primeira condição para entender o que ele está falando. E, quando os homens tentam ser cristãos sem essa consciência preliminar do pecado, o resultado está quase fadado a ser certo ressentimento contra Deus, tendo-o como alguém que está sempre fazendo exigências impossíveis e permanece inexplicavelmente zangado.
Não estou tentando nada de muito esplêndido neste capítulo; estou meramente tentando levar meu leitor (e, mais ainda, a mim mesmo) a um pons asinorum5 — a dar o primeiro passo para fora do paraíso dos tolos e da ilusão absoluta.
1
Nós insinuamos, e muitas vezes cremos, que os vícios habituais são atos isolados excepcionais, e cometemos o erro oposto sobre nossas virtudes — como o mau jogador de tênis que chama sua forma normal de “dias ruins” e confunde seus raros sucessos com seu normal. Não acho que seja culpa nossa a incapacidade de contar a verdade real sobre nós mesmos; o murmúrio interno persistente de toda a vida, de ódio, ciúme, lascívia, ganância e autocomplacência simplesmente não se manifesta em palavras. Mas o importante é que não devemos confundir nossas elocuções inevitavelmente limitadas com um relato completo do pior que existe dentro de nós.
2
Nós nos sentimos envolvidos em um sistema social iníquo e compartilhamos uma culpa corporativa. Isso é muito verdadeiro, mas o inimigo pode explorar até mesmo verdades para nosso engano. Cuidado para não usar a ideia de culpa corporativa para desviar a atenção de suas próprias culpas maçantes e antiquadas, que nada têm a ver com “o sistema” e que podem ser enfrentadas sem esperar pelo milênio. Pois a culpa corporativa talvez não seja, e certamente não é, sentida com a mesma força que a culpa pessoal.
3
Temos uma estranha ilusão de que o mero passar do tempo cancela o pecado. Ouvi outros, e tenho ouvido a mim mesmo, recontando crueldades e falsidades cometidas na infância como se não dissessem respeito ao orador atual, e até mesmo rindo delas. Mas o mero passar do tempo não faz nada ao fato ou à culpa de um pecado. A culpa não é lavada pelo tempo, mas pelo arrependimento e pelo sangue de Cristo: se nos arrependemos desses pecados antigos, devemos nos lembrar do preço pago por nosso perdão e ser humildes. Quanto ao fato do pecado, é provável que alguma coisa o cancele? Todos os tempos estão eternamente presentes para Deus.
4
Devemos nos resguardar do sentimento de que há “segurança nos números”. É natural sentir que, se todos os homens são tão maus como os cristãos dizem, então, a maldade deve ser escusável. Se todos os garotos forem mal no exame, não é certo que a prova devia estar muito difícil? E é assim que os mestres daquela escola se sentem, até saber que existem outras escolas onde 90% dos garotos foram aprovados na mesma prova. Então, eles começam a suspeitar que a culpa não esteja nos examinadores.
6
Não somos realmente uma era cada vez mais cruel? Talvez sejamos, mas penso que nos tornamos assim na tentativa de reduzir todas as virtudes à bondade. Pois Platão acertadamente ensinou que a virtude é algo único.10 Você não pode ser bondoso a menos que tenha todas as outras virtudes. Se, sendo covarde, presunçoso e indolente, você não causou ainda um grande mal a um semelhante, é apenas porque o bem-estar de seu próximo ainda não entrou em conflito com sua própria segurança, autoaprovação ou com seu conforto. Todo vício leva à crueldade. Mesmo uma emoção boa, a piedade, se não for controlada pela caridade e pela justiça, leva da raiva à crueldade.
CAPÍTULO 5
De acordo com a doutrina da queda, o homem agora é um horror para Deus e para si mesmo e uma criatura mal adaptada ao universo, não porque Deus o fez assim, mas porque o próprio ser humano se fez assim pelo mau uso de seu livre-arbítrio. Em minha opinião, esta é a única função da doutrina: proteger-nos de duas teorias subcristãs a respeito origem do mal, o monismo,2 segundo o qual o próprio Deus, estando “acima do bem e do mal”, produz imparcialmente os efeitos a que damos esses dois nomes; e o dualismo,3 segundo o qual Deus produz o bem, enquanto algum Poder igual e independente produz o mal. Contra esses dois pontos de vista, o cristianismo afirma que Deus é bom; que ele fez todas as coisas boas e para o bem da bondade delas mesmas; que uma das coisas boas que ele fez, a saber, o livre-arbítrio das criaturas racionais, por sua própria natureza incluía a possibilidade do mal; e que as criaturas, aproveitando-se dessa possibilidade, tornaram-se más.
A narrativa do Gênesis é uma história (cheia da mais profunda sugestão) sobre uma maçã6 mágica do conhecimento; mas, na doutrina desenvolvida, a magia inerente da maçã desapareceu completamente de vista, e a narrativa é simplesmente uma história de desobediência. Tenho o mais profundo respeito até pelos mitos pagãos, ainda mais pelos mitos da Sagrada Escritura. Portanto, não tenho dúvidas de que a versão que enfatiza a maçã mágica e reúne a Árvore da Vida e do Conhecimento contém uma verdade mais profunda e sutil do que a versão que torna a maçã, simplesmente e unicamente, um juramento de obediência.
Se quisermos manter a doutrina da Queda em qualquer sentido real, devemos procurar o grande pecado em um nível mais profundo e atemporal que o da moralidade social.
Esse pecado foi descrito por Agostinho como o resultado do Orgulho, do movimento pelo qual uma criatura (isto é, um ser essencialmente dependente cujo princípio de existência não está em si, mas em outro) tenta se estabelecer, existir por si.9 Tal pecado não requer condições sociais complexas, nenhuma experiência extensa, nenhum grande desenvolvimento intelectual. A partir do momento em que uma criatura se torna consciente de Deus como tal e de si mesma como um eu, a terrível alternativa de escolher Deus ou o eu como centro se abre para ela. Esse pecado é cometido diariamente por crianças e por camponeses ignorantes, bem como por pessoas sofisticadas, por solitários não menos do que por aqueles que vivem em sociedade; é a queda em cada vida individual, e em cada dia de cada vida individual, o pecado básico por trás de todos os pecados em particular — neste exato momento você e eu o estamos cometendo, ou prestes a cometê-lo, ou dele nos arrependendo.
A criatura pode ter existido por muito tempo nesse estado antes de se tornar homem: pode até ter sido inteligente o suficiente para fazer coisas que um arqueólogo moderno aceitaria como prova de sua humanidade. Mas era apenas um animal porque todos os seus processos físicos e psíquicos eram direcionados para fins puramente materiais e naturais. Então, na plenitude dos tempos, Deus fez descer sobre esse organismo, tanto em sua psicologia quanto em sua fisiologia, um novo tipo de consciência que poderia dizer “eu” e “mim”, que poderia se olhar como um sujeito, que conhecia Deus, que podia julgar a verdade, a beleza e a bondade, e que estava tão acima do tempo que podia percebê-lo fluindo e se tornando passado.
Por mais rica e variada que seja a experiência que o homem tenha com seus companheiros (ou companheiro) na caridade e na amizade e no amor sexual, ou com os animais, ou com o mundo ao redor quando, pela primeira vez, foi reconhecida como bela e terrível, Deus veio primeiro no amor e no pensamento do homem, e isso sem esforço doloroso. Em movimento cíclico perfeito, o ser, o poder e a alegria desceram de Deus ao homem na forma de dom e retornaram do homem a Deus na forma de amor obediente e adoração extática, e, nesse sentido, embora não em todos, o homem era, naquele tempo, verdadeiramente o filho de Deus, o protótipo de Cristo, desempenhando perfeitamente com alegria e facilidade todas as faculdades e todos os sentidos daquela entrega filial que Nosso Senhor realizou nas agonias da crucificação.
Como um jovem quer uma mesada regular do pai, a qual ele pode contar como um bem de sua propriedade, com a qual ele faz seus planos (e com razão, pois seu pai é, afinal, um semelhante), naquela ocasião, as criaturas desejaram ficar por conta própria, cuidar do próprio futuro, planejar o prazer e a segurança, ter um meum12 do qual, sem dúvida, prestariam algum tributo razoável a Deus na forma de tempo, atenção e amor, o qual, no entanto, era delas, não dele. Elas queriam, como dizemos, “chamar de sua a própria alma”.
Tendo se desligado, tanto quanto podia, da fonte de seu ser, o homem se desligou da fonte de poder, pois, quando dizemos das coisas criadas que A governa B, isso deve significar que Deus governa B por meio de A. Duvido que fosse intrinsecamente possível para Deus continuar a governar o organismo por meio do espírito humano quando este revoltou-se contra ele.
Deus podia ter interrompido esse processo por meio de milagre, mas isso — para falar em uma metáfora um tanto irreverente — teria sido recusar o problema que Deus se propôs quando criou o mundo: o problema de expressar sua bondade mediante o drama total de um mundo contendo agentes livres, apesar, e por meio, da rebelião destes contra ele. O símbolo de um drama, uma sinfonia ou uma dança é aqui útil para corrigir certo absurdo que pode surgir se falarmos muito de Deus planejando e criando o processo mundial para o bem e de que o bem é frustrado pelo livre-arbítrio das criaturas. Isso pode levantar a ideia ridícula de que a Queda pegou Deus de surpresa e atrapalhou seu plano, ou então — mais ridiculamente ainda — que Deus planejou tudo com vistas a condições que, ele bem sabia, nunca seriam realizadas. Na verdade, é claro, Deus viu a crucificação no ato de criar a primeira nebulosa. O mundo é uma dança em que o bem, descendo de Deus, é perturbado pelo mal que surge das criaturas, e o conflito resultante é resolvido pela própria assunção de Deus da natureza que sofre e produz o mal. A doutrina da Queda a partir do livre-arbítrio afirma que o mal, que torna o combustível ou matéria-prima para o segundo e mais complexo tipo de bem, não é contribuição de Deus, mas do homem. Isso não significa que, se o homem tivesse permanecido inocente, Deus não poderia ter arquitetado um todo sinfônico igualmente esplêndido — supondo que insistamos em fazer tais perguntas. Mas deve sempre ser lembrado que, quando falamos do que poderia ter acontecido, de contingências fora de toda a realidade, não sabemos realmente do que estamos falando.
CAPÍTULO 6
Foram os humanos, e não Deus, que produziram mesas de tortura, chicotes, prisões, escravidão, armas, baionetas e bombas; é pela avareza humana, ou estupidez humana, não pela grosseria da natureza, que temos pobreza e excesso de trabalho. Mas permanece, no entanto, muito sofrimento que não pode ser atribuído a nós mesmos. Mesmo que todo sofrimento fosse causado pelo homem, gostaríamos de saber a razão da enorme permissão para torturar seus semelhantes que Deus dá ao pior dos homens.
A palavra Dor tem dois sentidos que devem ser agora distinguidos. A. Um tipo particular de sensação, provavelmente transmitido por fibras nervosas especializadas, e reconhecível pelo paciente como esse tipo de sensação, quer ele goste, quer não (e.g.: uma leve dor em meus membros seria reconhecida como dor, mesmo que eu não tenha objeção a isso). B. Qualquer experiência, seja ela física ou mental, de que o paciente não goste. É digno de nota que todas as Dores no sentido A tornam-se Dores no sentido B se passarem de certo nível, bastante baixo, de intensidade, mas que as Dores no sentido B não precisam ser Dores no sentido A. Dor no sentido B, de fato, é sinônimo de “sofrimento”, “angústia”, “tribulação”, “adversidade” ou “dificuldade”, e é com respeito a ela que se levanta o problema da dor.
A primeira resposta, então, à pergunta sobre por que nossa cura deve ser dolorosa, é que render a vontade que há tanto reivindicamos para nós mesmos é em si mesmo, onde e como quer que seja feito, uma dor terrível.
Todos nós nos lembramos de como essa vontade própria era na infância — a raiva amarga e prolongada a cada contrariedade, a explosão de lágrimas apaixonadas, o desejo sombrio e Satânico de matar ou de morrer em vez de ceder. Portanto, o tipo mais antigo de babá ou de pai estava muito certo em pensar que o primeiro passo na educação é “quebrar a vontade da criança”. Os métodos deles eram frequentemente errados, mas não ver a necessidade que havia é, penso eu, cortar-se de todo o entendimento das leis espirituais. E, se agora que crescemos, não berramos nem chutamos tanto, é em parte porque os mais velhos começaram o processo de quebrar ou matar nossa vontade no berçário, e em parte porque as mesmas paixões agora assumem formas mais sutis e se tornaram hábeis em evitar a morte por meio de várias “compensações”.
Podemos descansar contentes em nossos pecados e em nossa estupidez; e quem quer que tenha visto glutões comendo os mais deliciosos alimentos como se não soubessem o que estavam comendo, admitirá que podemos ignorar até o prazer. Mas a dor insiste em estar presente. Deus nos sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nossas dores: esse é seu megafone para despertar um mundo surdo. Um homem mau e feliz é um homem sem a menor suspeita de que suas ações não “respondem”, que não estão de acordo com as leis do universo.
Quando nossos ancestrais se referiam às dores e tristezas como a “vingança” de Deus sobre o pecado,7 eles não estavam necessariamente atribuindo a Deus as paixões más; podiam estar reconhecendo o elemento do bem na ideia de retribuição. Enquanto o homem mau não encontrar, na forma de dor, o mal inequivocamente presente em sua existência, ele estará encerrado em ilusão. Uma vez que a dor o desperte, ele descobrirá que está, de uma forma ou de outra, “contra” o universo real: ou ele se rebela (com a possibilidade de um resultado mais claro e um arrependimento mais profundo em algum estágio posterior), ou então faz alguma tentativa de ajuste, que, se perseguido, o levará à religião.
Sem dúvida, a Dor como megafone de Deus é um instrumento terrível; ela pode levar a uma rebelião final e sem arrependimento, mas dá a única oportunidade que o homem mau pode ter para se corrigir. Ela remove o véu; ela finca a bandeira da verdade na fortaleza de uma alma rebelde.
Todos notaram como é difícil voltar os pensamentos para Deus quando tudo está indo bem conosco. “Temos tudo o que queremos” é um ditado terrível quando “tudo” não inclui Deus. Percebemos que Deus é uma interrupção. Como diz Agostinho em algum lugar: “Deus quer nos dar algo, mas não pode, porque nossas mãos estão ocupadas — não há onde ele colocar aquilo”.11 Ou, como disse um amigo meu: “Consideramos Deus como um aviador considera seu paraquedas: está lá para emergências, mas ele espera nunca ter de usá-lo”. Deus, porém, que nos fez, sabe o que somos e que a nossa felicidade está nele.
Imploro ao leitor que tente crer, mesmo que por um momento, que Deus, criador dessas pessoas merecedoras, pode realmente estar certo quando pensa que a modesta prosperidade delas e a felicidade de seus filhos não são suficientes para torná-las abençoadas; que, ao fim, tudo isso deve ir-se delas, e que, se elas não aprenderam a conhecê-lo, serão miseráveis. E por isso ele as perturba, avisando-as de antemão de uma insuficiência que um dia terão de descobrir.
É ruim apresentar nossas justificativas a Deus quando o navio em que estamos está afundando; é uma coisa ruim ir até ele como último recurso, oferecer “o que é nosso” quando não vale mais a pena mantê-lo. Se Deus fosse orgulhoso, dificilmente nos aceitaria nesses termos; mas ele não é orgulhoso, ele se inclina para conquistar, ele nos receberá, embora tenhamos mostrado que preferimos tudo a ele e nos aproximamos dele porque não há “nada melhor” agora para se ter. A mesma humildade é demonstrada por todos aqueles apelos Divinos a nossos medos que perturbam as pessoas magnânimas que leem as Escrituras. Não é elogioso a Deus que o escolhamos como alternativa ao Inferno: mesmo assim, ele aceita.
Nossos pais costumavam dizer que os problemas foram “enviados para nos provar”.19 Um exemplo conhecido é a “prova” de Abraão quando recebeu a ordem de sacrificar Isaque.20 Não estou preocupado agora com a historicidade ou a moralidade dessa história, mas com a pergunta óbvia: “Se Deus é onisciente, ele sabia o que Abraão faria, sem experimento algum; por que, então, essa tortura desnecessária?” Mas, como aponta Agostinho,21 embora Deus soubesse, Abraão não sabia, de modo algum, que sua obediência poderia suportar tal comando até que a ocasião o ensinou; e a obediência que ele não sabia que escolheria, não pode ser dito que ele a escolheu.
A realidade da obediência de Abraão foi o ato em si; e o que Deus conhecia ao saber que Abraão “obedeceria” foi a obediência real de Abraão no topo da montanha naquele momento. Dizer que Deus “não precisava ter feito o experimento” é declarar que, porque Deus sabe, aquilo que é conhecido por ele não precisa existir.
O cristianismo nos ensina que a terrível tarefa, em certo sentido, já foi cumprida em nosso favor — que a mão de um mestre está segurando a nossa enquanto tentamos traçar as letras difíceis e que nosso roteiro precisa ser apenas uma “cópia”, não um original.
O cristianismo exige apenas que consertemos uma orientação errada de nossa natureza, e não tem nenhuma contenda, como Platão tinha, com o corpo como tal, nem com os elementos psíquicos em nossa constituição.
Devemos lembrar que o momento real da dor presente é apenas o centro do que pode ser chamado de todo o sistema tribulacional que se estende por meio do medo e da compaixão. Quaisquer que sejam os bons efeitos dessas experiências, eles dependem do centro; de modo que, mesmo se a dor em si não tivesse valor espiritual e, ainda, se o medo e a compaixão tivessem, a dor teria de existir para que houvesse algo a ser temido e gerar compaixão. E não há dúvida de que o medo e a compaixão nos ajudam em nossa volta à obediência e à caridade. Todos já experimentaram o efeito de a compaixão, em muito, facilitar para nós amar o que não é amável — isto é, amar os homens não porque eles sejam, de alguma forma, naturalmente agradáveis para nós, mas porque são nossos irmãos. Foi a beneficência do medo que a maioria de nós aprendeu durante o período de “crises” que levou à guerra atual.
Minha própria experiência é algo assim. Estou avançando ao longo do caminho da vida em minha condição ordinária, satisfatoriamente caída e ímpia, absorta em um encontro alegre com meus amigos amanhã ou em um pouco de trabalho que faz afagos em minha vaidade hoje, um feriado ou um novo livro, quando de repente uma pontada de dor abdominal que indica doenças graves, ou uma manchete nos jornais que ameaça a todos nós com a destruição, faz todo esse castelo de cartas desmoronar. No começo, fico confuso, e todas as minhas pequenas felicidades parecem brinquedos quebrados. Então, de forma lenta e relutante, pouco a pouco, tento entrar no estado de espírito em que eu deveria estar o tempo todo. Lembro a mim mesmo de que todos esses brinquedos nunca tiveram a intenção de possuir meu coração, de que meu verdadeiro bem está em outro mundo e meu único tesouro real é Cristo. E talvez, pela graça de Deus, eu tenha sucesso nisso e me torne, por um ou dois dias, uma criatura conscientemente dependente de Deus e extraindo sua força das fontes certas. Mas, no momento em que a ameaça é retirada, toda a minha natureza salta de volta para os brinquedos: fico até ansioso, Deus me perdoe, de banir da minha mente a única coisa que me sustentou sob a ameaça, porque agora ela está associada à miséria daqueles poucos dias. Assim, a terrível necessidade de tribulação é muito clara. Deus me teve por apenas 48 horas e, na ocasião, apenas à força de tirar tudo o mais de mim.
CAPÍTULO 10
Hoje em dia, temos muita vergonha de até mencionar o céu: tememos a zombaria sobre a “torta nas nuvens”4 e receamos ouvir que estamos tentando “escapar” do dever de fazer um mundo feliz aqui e agora porque sonhamos com um mundo feliz em outro lugar. Mas ou existe “torta nas nuvens”, ou não. Caso inexista, então o cristianismo é falso, pois essa doutrina está tecida em toda a sua estrutura. Caso exista, então essa verdade, como qualquer outra, deve ser enfrentada, sendo ela útil em reuniões políticas ou não. Novamente, tememos que o céu seja um suborno e que, se fizermos dele nosso objetivo, não estaremos mais desinteressados. Não é assim. O céu não oferece nada que uma alma mercenária possa desejar. É seguro dizer aos puros de coração que eles verão a Deus,5 pois somente os puros de coração desejam isso.
Finalmente aqui está aquilo para que eu fui feito”. Não podemos contar um ao outro sobre isso. É a assinatura secreta de cada alma, o desejo incomunicável e implacável, o que desejávamos antes de encontrar nossa esposa ou fazer nossos amigos ou escolher nosso trabalho, e que ainda desejaremos em nosso leito de morte, quando a mente não conhecer mais esposa ou amigo ou trabalho. Enquanto nós formos, isso será. Se perdermos isso, perderemos tudo.
O molde em que é feita uma chave seria uma coisa estranha se você nunca tivesse visto uma chave, e a própria chave, uma coisa estranha, se você nunca tivesse visto uma fechadura. Sua alma tem uma forma curiosa, pois é um buraco feito para se encaixar em uma determinada protuberância nos contornos infinitos da substância divina, ou uma chave para destrancar uma das portas da casa com muitas mansões. Pois não é a humanidade em abstrato que deve ser salva, mas você, você, o leitor individual, o seu João Sousa ou a dona Janete Silveira.
Deus olhará para cada alma como seu primeiro amor porque ele é o primeiro amor dela. Seu lugar no céu parecerá ter sido feito para você, e somente para você, porque você foi feito para ele — feito para ele ponto por ponto como uma luva é feita para uma mão.
Esta é a lei suprema: a semente morre para viver, o pão deve ser lançado sobre as águas, aquele que perder sua alma a salvará.12 Mas a vida da semente, o encontrar o pão, a recuperação da alma são tão reais quanto o sacrifício preliminar. Portanto, é verdadeiramente dito que “no céu não há propriedade. Se alguém ali decidisse chamar qualquer coisa de sua, ele imediatamente seria lançado no inferno e se tornaria um espírito maligno”.
Mas também é dito: “Ao vencedor darei […] uma pedra branca com um novo nome nela inscrito, conhecido apenas por aquele que o recebe”.14 O que pode ser mais próprio de um homem do que esse novo nome que, mesmo na eternidade, permanece um segredo entre Deus e ele? E o que esse segredo deve significar? Certamente, cada um dos redimidos conhecerá e louvará para sempre algum aspecto da beleza Divina melhor do que qualquer outra criatura. Por qual outro motivo teriam sido criados os indivíduos, a não ser que Deus, amando a todos infinitamente, poderia amar a cada um de maneira diferente? E essa diferença, longe de prejudicar, inunda de sentido o amor de todas as bem-aventuradas criaturas umas pelas outras: a comunhão dos santos. Se todos experimentassem Deus da mesma maneira e lhe retribuíssem uma adoração idêntica, o cântico da Igreja triunfante não teria sinfonia, mas seria como uma orquestra em que todos os instrumentos tocam a mesma nota. Aristóteles nos disse que uma cidade é uma unidade de diferentes,15 e Paulo, que um corpo é uma unidade de diferentes membros.16 O céu é uma cidade e um Corpo porque os bem-aventurados permanecem eternamente diferentes; uma sociedade porque cada um tem algo a dizer a todos os outros: notícias novas e sempre novas do “Deus particular” que cada um encontra nele e a quem todos louvam como “Nosso Deus”.
Pois a união existe apenas entre distintos; e, talvez, desse ponto de vista, tenhamos um vislumbre momentâneo do significado de todas as coisas.
Deus criou: ele fez com que as coisas fossem diferentes de si mesmo para que, sendo distintas, elas pudessem aprender a amá-lo e a alcançar a união em vez de mera igualdade.
Deus não ama a si mesmo como ele mesmo, mas como Bondade; e, se houvesse algo melhor do que Deus, ele amaria àquilo e não a si mesmo”.20 Do mais alto ao mais baixo, o eu existe para ser abdicado e, por essa abdicação, torna-se o mais verdadeiro eu, para ser, portanto, ainda mais abdicado, e assim para sempre.