Jacques.Bourlegat 21/02/2017
L'éloge de la folie ...
Até a minha vida adulta só havia conhecido um Erasmo. E não era o autor do livro aqui apresentado. Era o cantor muito famoso no Brasil, principalmente nos anos 70: Erasmo Carlos. Nunca tinha ouvido falar em qualquer outro que se chamasse assim, conhecido ou desconhecido. Até que um dia, ao assistir o filme ?L?auberge Espagnole?, descubro que existe um programa europeu, Erasmus, que promove intercâmbio de estudantes nos países da Europa. No filme, o personagem principal é francês e faz o intercâmbio em Barcelona, na Espanha, e entre diferentes problemas e questionamentos, eis que o heroi começa a delirar e fala com o tal Erasmo. Fiquei curioso em saber quem era o cara e o porquê do programa ter sido chamado assim.
Fui até a bliblioteca municipal de Nice, onde eu morava, (eu não tinha internet na época) e encontrei uma biografia enorme com uma capa toda vermelha. Erasmo era descrito como filósofo, teólogo e intelectual ligado ao movimento humanista durante o Renascimento. Na verdade, chamava-se Desidérius Erasmus. Nascera em Roterdam e, por isso, era conhecido por Erasmo de Roterdam (assim como alguns do seu tempo, tal como Leonardo que nascera em Vinci). E então soube a razão pela qual deram o nome ao programa europeu. Erasmo viajou pela Europa inteira: Itália, Alemanha, Inglaterra, França, Holanda, Suíça, entre outros, para efetuar os seus estudos acadêmicos e principalmente teológicos.
Erasmo, ao que parece, estava em busca de ?algo? com essas viagens. Conhecimento? Compreensão do mundo em que vivia? Inspiração? ( inspiração na Antiguidade, pois, é claro, estamos falando do Renascimento.) E o movimento Humanista veio bem nesse momento em que se redescobriam as ?coisas? da Antiguidade sob um novo olhar. Saindo da ?era das trevas? que fora a Idade Média, os intelectuais em primeiro lugar, mas o mundo todo em seguida, estavam descobrindo (ou redescobrindo) noções que redefiniam a compreensão que tinham das coisas. Por exemplo, foi nesse período que fora exposta a teoria do heliocentrismo, na qual o sol é o centro do sistema em que o planeta Terra se encontra, logo após ficar definido que a Terra era redonda e não plana, assim como as descobertas de outras terras além mar, chamadas de mundo novo. A imprensa foi outro fator determinante na época de Erasmo, pois, cada vez mais, os intelectuais tinham uma força de presença que nunca antes tinha existido: a possibilidade de divulgar os seus pensamentos rapidamente e em grande escala. Podemos imaginar uma comparação nos dias atuais de como a internet abriu as fronteiras para o conhecimento. A imprensa de Gutenberg teve o mesmo efeito no Renascimento. Não acabei de ler toda a biografia dele, lembro que era muito doente e que escrevera um livro cujo título me intrigou e me prometi que o leria um dia desses: Elogio da Loucura.
Pois bem, anos depois acabei achando em um sebo o tal livro, com uma capa linda que reproduzia uma pintura de afresco entitulada Anjo aparecendo para Zacarias, realizada por Domenico Ghirlandaio, grande mestre renascentista. Comprei e, depois de um certo tempo, acabei de lê-lo. Trata-se de uma sátira na qual a Loucura ela mesma faz o seu elogio, ou seja, faz a argumentação em favor de algo, nesse caso, dela mesma: a Loucura.
Na sua argumentação, a Loucura descreve o quanto os seres humanos e a sociedade em geral são ingratos à sua pessoa, não reconhecem o quanto ela é benéfica ao seu desenvolvimento e à própria sobrevivência da espécie. Como alguém em sã consciência iria querer viver com todos os males que afligem o ser humano: guerras, doenças, tristeza, se não fosse esse lampejo que é causado pelo prazer, que ela, a loucura, proporciona a nós, reles mortais. Pois, segundo ela, os sentimentos prazerosos são concedidos por ela e ninguém mais. Tal uma deusa ela dota de élans de coragem os maiores herois: afinal, a coragem e a estupidez muitas vezes são indistintas. Mais um ato da loucura. Inclusive o casamento. Casar-se e ter filhos, principalmente no caso das mulheres que viviam (e muitas ainda vivem) num mundo machista e misógino. Que loucura! Vida escrava. Porém, ainda hoje, mesmo após a liberação das mulheres, o movimento feminista, elas ainda continuam querendo casar-se e ter filhos. E como ter esses desejos e superar tudo isso sem um grão de folia? Segundo a Loucura, não é possível. Pois, se todos fossem sensatos e sábios, não haveria prazeres e muito menos perpetuação da espécie.
Além do mais, faz críticas sobre o super ego dos mestres filósofos, assim como ao clero. Defende uma reforma nas práticas religiosas tal qual Lutero, embora menos drásticas quanto o movimento luterano. Mas podemos perceber ao lermos o elogio da loucura, o quanto acredita que os sacerdotes enclausuram-se em dogmas e preceitos religiosos que, se forem estudados, divergem do que teria ensinado Jesus Cristo. Os eclesiásticos de sua época tinham passado dos limites tanto quanto os fariseus na época de Jesus. E será que isso também não continua sendo praticado em alguns templos religiosos nos dias de hoje?
Enfim, considerado um dos clássicos da literatura mundial, com referências diversas à Bíblia, à mitologia greco-romana entre outros e escrito há mais de 500 anos, a leitura desta obra pode não ser tão simples. Ao mesmo tempo não é tão hermética e propõe um estudo filosófico sobre o seu tempo a respeito das coisas que os homens fazem. Estas linhas estão muito longe de abranger todas as temáticas do livro, mas, em minha opinião, as principais são as que descrevi acima. A obra ilustra perfeitamente o que foi esse período da Renascença: a reflexão sobre o homem (humanidade) na sociedade e no mundo em relação às suas crenças, posicionando a problemática numa perspectiva humana, levando ao movimento humanista (ao qual pertenceu Erasmo), onde as preocupações voltavam-se pouco a pouco para as necessidades de cada um.