Bernardo Brum 18/09/2016
"Killer thriller": quando o romance policial encontra o horror
"O Silêncio dos Inocentes", mais que o antecessor "Dragão Vermelho", foi o principal responsável junto à sua adaptação cinematográfica por consagrar a protagonista, a formanda do FBI Clarice Starling e principalmente seu coadjuvante, o psicólogo canibal Hannibal Lecter.
Do romance policial, Harris utilizou-se dos elementos estruturais do filão "crime procedural", centrados na investigação de pistas e análise de perfis criminosos. Do horror, elementos do whodunit? (contração de "who done it?", "quem fez isso?"), filão inaugurado por Poe e Edgar Wallace e que fez muito sucesso em várias mídias - no cinema, por exemplo, como os filões giallo e slasher.
Temos então temos a inteligência e determinação de Starling na busca por Buffalo Bill, um assassino de mulheres inspirado em serial killers reais como Ed Gein e Ted Bundy. É puro reflexo da época, quando serial killers ganhavam projeção midiática mundial, com os jornais detalhando seu modus operandi e trajetória dos policiais que os caçavam.
Interessante notar que a policial é uma mulher caçando um assassino de mulheres em um mundo de homens; o que se repete com todas as outras mulheres coadjuvantes, que têm de enfrentar as mais variadas formas de machismo, desde homens que as desprezam por não se encaixarem em arcaicas designações de papéis de gênero até assédio e violência sexual. De maneiras variadas, do orgulho passivo-agressivo do diretor do hospício Dr. Chilton até os requintes de crueldade de Lecter e Bill, fica marcado que um dos elementos mais perturbadores de "O Silêncio dos Inocentes" é a misoginia e seus mais variados aspectos e avatares que assumem.
Lecter tem seus motivos para figurar como um dos vilões mais notórios da cultura popular das últimas três décadas: diferindo da imagem clássica de lobo em pele de cordeiro (como víamos em um "Psicose") ou de um bárbaro à beira da selvageria, Hannibal é uma caricatura perversa do homem sofisticado.
Apreciador de alta gastronomia e música erudita, distinguindo perfumes pelo odor e destrinchando sotaques em pouco tempo de conversa, além de uma incrível capacidade de análise psicológica por pura inferência a partir de poucas informações factuais, o Dr. Lecter tem um papel bem menos central do que no primeiro romance de sua saga, atuando como uma espécie de tutor para a protagonista. Um anti-tutor perverso, é verdade, que gosta de provocar, manipular e omitir por pura diversão, guiando a policial obcecada em descobrir a verdade por salas cheias de fumaça e espelhos.
Harris nem sempre tem uma prosa clara ou objetiva - certas passagens, especialmente as de tensão ou tensão, podem parecer ocasionalmente confusas. Mas o trunfo do autor é a construção psicológica brilhante de seus personagens - à medida que conhecemos Clarice, entendemos como ser policial, corrigir injustiças e caçar criminosos faz parte de sua natureza de maneira incontornável.
Isso a leva a criar um laço de proximidade com seu superior Jack Crawford, espécie de segundo mentor de Starling; policial experiente e emocionalmente calejado, põe um contraponto mais ético aos caminhos sem volta que Lecter se diverte em abrir. Com a esposa à beira da morte, tem uma das poucas subtramas do livro ao lado de Lecter que, trancafiado em uma prisão manicomial, faz seus cruéis jogos mentais enquanto espera uma oportunidade de fuga.
Com isso, Buffalo Bill, ainda que assustador, acaba ofuscado em relação ao núcleo principal. Polêmico à época e ainda hoje, o grande vilão do livro em toda sua repulsão acaba esvaziado. Isso tampouco chega a ser um tiro no pé do livro: ele antes é uma assombração, uma criatura dos pesadelos, habitando uma casa assustadora e quase clichê. Os dilemas de Starling e Lecter operam em um nível bem mais realista, por assim dizer: mais psicológico e com menos psicologismos, andando em uma área moral bem mais cinzenta.
O ouro do livro está na relação entre policial e criminoso, ambos psicólogos de formação. Seus diálogos tateiam, rastreiam e questionam a motivação por trás dos crimes analisados, papel que antes era assumido no livro anterior por Will Graham. Mas se Graham e Lecter nutriam ódio mútuo pela identificação em certo nível, sendo arqui-inimigos que tinham em certo nível de trabalhar juntos, Lecter e Starling têm uma relação ainda mais complicada. Professor e aluna, gato e rato, negociantes de informações e acordos. Para capturar Buffalo Bill, Clarice se vê obrigada a se aproximar e a se abrir para um verdadeiro predador, o que geram algum dos momentos mais desconfortáveis e perturbadores da obra, justamente porque Harris está apostando na sugestão e não no exagero de detalhes gráficos.
Definitivamente influente - o arquétipo da mulher detetive que desafia os papéis de gênero e conquistam sua posição e objetivos de maneira intelectual e racional podem ser vistos em personagens como Dana Scully, de "Arquivo X" e Sarah Linden, de "The Killing", e o gênero popularizado por Harris também alcançou sucesso em romances como "Post-Mortem" e "O Colecionador de Ossos" - o romance tem todos os méritos de um clássico best-seller contemporâneo. Criou um caminho singular em sua convergência de gêneros, facilmente reconhecível, arrebatando uma legião de fãs. Poucos competem de igual para igual nas últimas décadas com Dr. Lecter na galeria de grandes ícones cult, e bastará a leitura - viciante, magnética e imersiva - para se compreender a razão.