Paulo 27/08/2023
Cidadão esmagado pelo Estado
Depois de ler “O processo” e “A metamorfose”, de Kafka, chegou a vez do maior deles, “O castelo”. Não é só o mais longo romance, mas o mais inquietante, angustiante e ambíguo dos livros do autor que já li.
A história começa com a chegada do Sr. K em uma aldeia, dizendo-se que havia sido contratado como agrimensor pelo duque, autoridade administrativa máxima do local, que residia no castelo.
Sabemos pouco de K: tinha mulher e filhos e veio de longe. Ele não se recorda de seus supostos ajudantes, não é possível nem mesmo ter certeza se K era agrimensor ou apenas um oportunista.
K passa toda a história tentando ser recebido e reconhecido pelos funcionários públicos do castelo, praticamente inacessíveis. Tenta se encontrar com os servidores públicos na rua e no albergue, mas é sempre em vão.
A obra pode ser interpretada de diversas formas dicotômicas: exclusão dos judeus pelos europeus, separação do inconsciente e consciente e a luta do cidadão contra a burocracia. Esta última foi a que me pareceu mais impactante.
Sabe aquele problema com a justiça ou com a Receita Federal que não termina nunca e que aparentemente não tem solução? Neste livro, Kafka consegue transmitir a sensação de impotência e angústia sentidas pelo cidadão face à inoperância da máquina estatal.
É curioso que os aldeãos se sujeitam completamente aos caprichos dos servidores públicos, que são tratados como semideuses. Até mesmo favores sexuais são exigidos, com naturalidade, em troca de despachos administrativos. É preciso “vender a alma” para o estado, em troca do atendimento do mais simples requerimento. Nessa perspectiva a obra é comparada ao Fausto, de Goethe.
O Estado é retratado como autorreferente, pouco se importando com as demandas sociais, somente com seus próprios interesses. Situações absurdas permeiam toda a obra: inquéritos são realizados de noite, em hotéis; a distribuição de processos é aleatória; a negação de favor sexual de uma aldeã causa a exclusão social de sua família.
K não tem personalidade ou unidade de vida: ele sequer é descrito fisicamente. Sua história de vida é dúbia. Não sabendo nem mesmo quem se é, o ser humano fica completamente à mercê do arbítrio estatal.