Coruja 31/07/2018Ganhei esse livro de uma amiga que é tão fã de Blade Runner que até tatuou na perna o unicórnio que aparece no filme. Já fazia um tempinho que o volume estava na estante à espera, mas depois de duas excelentes experiências com PKD (os contos de Realidades Adaptadas e O Homem do Castelo Alto), não tinha como adiar mais a leitura desse clássico da ficção científica.
Num mundo pós-desastre nuclear, a maior parte da população humana deixou a Terra por Marte. Para estimular a emigração, cada humano ganha no processo um robô segundo suas especificações. O problema desse sistema é que as pessoas querem robôs cada vez mais parecidos com humanos, e quanto mais humanos eles se tornam, mais desejosos de liberdade - o suficiente para se rebelarem, matarem seu mestres e fugirem para a Terra. É nesse contexto que entra Rick Deckard, o protagonista do livro, é chamado para ‘aposentar’ seis androides de um novo modelo particularmente avançado: os nexus-6.
Nessa realidade, impera também uma religião, chamada mercerismo, cuja base fundamental é a empatia - empatia que é considerada a principal diferente entre humanos e máquinas. O mercerismo não promete salvação; não tem sequer uma divindade formal, mas existe, nas palavras de seu messias, ‘para que as pessoas saibam que não estão sozinhas’. Essa religião se liga também à importância que a sociedade sobrevivente do cataclismo nuclear dá aos animais, que representam regeneração, esperança, uma tentativa de salvar aquilo que de melhor existia antes da guerra. Claro que, em se tratando de seres humanos, essa questão dos animais acaba também por se tornar um componente de elitismo social… afinal, os animais de verdade, vivos, tornaram-se raros e caros. Há um comércio, e há uma exposição. Seria demais esperar o contrários de seres frágeis e imperfeitos, como são os humanos.
A escrita de PKD é limpa, sem grandes firulas, mas é uma narrativa que te prende, com diálogos bem afiados e cenas de ação de segurar o fôlego. É também repleta de simbologias e referências e acho que ainda precisarei de muitas releituras para pescar a maioria. No mais, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? é uma fantástica ficção científica; uma história de investigação, perseguições, manipulação social; e é também um livro que se presta fantasticamente ao debate.
O livro foi publicado em 1968, mas todos esses tópicos permanecem bastante atuais. Sei de pessoas de carne e osso que provavelmente falhariam no teste de empatia que Rick usa para descobrir seus androides; e a inteligência artificial de fato tem se tornado cada vez mais próxima do ser humano. Versões da realidade é um tema constante em tudo o que li até agora de PKD, mas há outros tópicos de interesse filosófico: compaixão, identidade, memória, solidão, ética, e, claro, a dualidade entre natureza e seres artificiais.
Críticos costumam torcer o nariz para literatura de gênero, só vendo validade do que chama ‘ficção literária’ e deixando de lado todo o resto: ficção científica, fantástica, policial… mas a verdade é que as boas histórias transcendem gêneros e classificações e a literatura de Philip K. Dick faz exatamente isso. Todas as histórias que li dele até hoje, contos e romances, fizeram com que eu passasse dias refletindo e questionando. Ele te desafia a pensar o mundo de formas diferentes, explorar velhos problemas sob novos ângulos. No final das contas, ele nos leva a questionar: afinal, o que significa ser humano?
Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? não traz uma resposta - afinal, não se trata exatamente de uma pergunta fácil -, mas convida a ponderar o assunto. Em tempos de intolerância, violência, tão pouca empatia, e banalização da vida, isso, cá entre nós, já me parece uma vitória.
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