Leon 09/11/2021
Uma história sonâmbula, forte e mágica
Eu decidi que escreveria uma resenha para esse livro quando eu estava na metade dele. Não foi só porque eu estava gostando muito, nem porque a escrita do Mia Couto me conquistou de primeira. Mas foi porque desde o início, esse livro me passava a mesma sensação de magia e imersão que eu sentia quando era criança e lia muitos dos livros que se tornaram meus favoritos e achei que, depois de tanto tempo sem escrever nenhuma resenha, poderia tentar falar sobre livros - que é algo que eu gosto muito - mais uma vezes nesse site
Terra Sonâmbula, do Mia Couto, tem um enredo bem simples. Muidinga, um menino com amnésia que quer encontrar os pais e Tuahir, um velho que o salvou de uma doença e o ajuda, são sobreviventes de uma guerra no moçambique e estão viajando por uma estrada quando encontram um machimbombo (um ônibus) queimado e resolvem usá-lo como abrigo. Ao limparem o machimbombo, encontram vários cadernos escritos por um homem chamado Kindzu e a partir daí a história vai alternando entre a convivência entre Muidinga e Tuahir e a história de Kindzu.
E acho que isso é o máximo que dá pra ser dito sem entregar muito da história, embora a história nunca seja o único motivo para eu gostar de um livro. Mas minha experiência com Terra Sonâmbula foi incrível porque eu sabia pouquíssimo da história e quase nada do Mia Couto, então foi surpresa atrás de surpresa. E acho que dá pra falar em alguns pontos o que eu mais gostei e porque eu acho que esse livro merece MUITO ser lido.
Em primeiro lugar (mas sem spoiler) o enredo do livro, mas ainda tomando cuidado pra não entregar tanto kk. Uma história completamente diferente do que eu imaginava que seria e que continuava diferente a cada capítulo, sempre quebrando minhas expectativas. O livro conseguia intercalar cenas e capitulos pesados e tensos com uma sensação de uma aventura mágica e muito instigante. Por vezes eu tinha mais interesse no dia a dia reflexivo de Muidinga e Tuahir, mas outras vezes só queria logo ler os cadernos do Kindzu com sonhos, viagens, personagens com histórias interessantes e folclore. E ambos funcionam muito bem da forma intercalada que o Mia Couto escolheu contar, passando tanto uma sensação de aproximação entre a criança e o velho, quanto de passagem de tempo naquele país arruinado, quanto de intimidade com Kindzu, que narra seus cadernos em primeira pessoa.
E os cadernos do Kindzu contam uma história incrível, uma jornada que me levava direto pra lendas que eu lia quando era criança, com uma sensação de realismo mágico, com toques de fantasia que a gente abraça e fez todo sentido nos meus sentimentos enquanto eu lia. Ao mesmo tempo que é uma história meio épica, é também simples, não é muito complexa. Tem um universo com tons meio folclóricos, com diálogos profundos em que realidade e sonho se misturam, em que o conhecimento místico faz parte da vida cotidiana. Seja em pássaros que nascem de penas colocadas no mar para esconder o traço de um barco; seja em uma mulher que é filha do céu e por isso na sua infância era vista como culpada pela falta de chuva - a sensação que eu tinha lendo o livro todo era digna de uma lenda maravilhosa, onde as coisas não tem que fazer sentido lógico. Mas isso tudo sem nunca perder de vista a época triste que foi a Guerra Civil Moçambicana e todo o cenário pesado da história. Esperança e tristeza convivem o tempo todo e reflexões muito profundas são dadas com tanta poesia que só deixa tudo melhor.
Inclusive, o segundo ponto, tão importante em qualquer livro e que faz toda essa atmosfera mágica dar certo e emocionar em todo momento é a escrita do Mia Couto. Como falei no primeiro parágrafo, a escrita dele me ganhou logo no início. Mia Couto escreve pouco e bem simples. É tudo muito direto, muito leve, mas não seco e direto - e também nem sempre fácil, algumas vezes eu precisava reler (e nem era pelas gírias e palavras típicas do Moçambique). Ele não gasta parágrafos para passar uma sensação ou um sentimento dos personagens. Ele escolhe as palavras certas e as imagens certas e tudo de um jeito tão lírico, tudo se torna muito sugestivo e muito forte, no sentido de que eu sentia tudo que ele transmitia e isso me emocionava demais, seja atiçando minha imaginação ou seja apertando o coração. E Mia Couto sabe tão bem quais palavras usar que ele até inventa as palavras que cabem melhor pras cenas kkkkkkk. Mia Couto já é conhecido (pelo que eu vi por aí kkkkk) pelos seus neologismos que funcionam perfeitamente quando colocados e que foi uma coisa que eu curti de cara. E alguns eram tão bons que eu ficava um bom tempo sem reação e gravei eles hahaha: cenas como alguém veementindo, um barco troteondeando, uma correnteza redemoníaca. Esses neologismos permitiam uma interpretação muito mais sensível das cenas e, mais uma vez, meio mágicas e poéticas mesmo.
E pra mim esses foram dois pontos que valeram a leitura. Porque tudo isso mexeu tanto com minha imaginação que eu me senti de novo lendo quando era criança. Uma história envolvente, desenvolvimentos (de personagem e enredo) bonitos e profundos, uma liberdade na forma de contar a história e um história realmente bem contada. Pelo que eu pesquisei o Mia Couto também tem uma intenção de valorizar as tradições orais do seu país, então vai ver isso deu essa sensação tão forte de estar lendo uma lenda ou um conto de fadas tão mágico. Mas além de ter toda essa fantasia que me pegou de jeito, o livro é tão humano, com lições profundas, com uma mensagem forte e com personagens marcantes que passam uma experiência universal. No fundo também acaba sendo meio pacifista, falando de como a guerra é horrível e o destino muda o tempo todo - assim como a história de Kindzu, que muda de rumo sem parar.
Por fim, queria dizer que essas foram minhas impressões. Eu não quero levantar nenhuma expectativa muito alta falando o que falei, pq isso foi tudo muito pessoal e o livro mexeu mt comigo, então tentem não imaginar como vcs se sentiriam se o lessem. Mas acho que é legal de quebrar uma ideia que livros mais "cults" são difíceis, mas esse aqui também é uma aventura e pode ser super divertido.
De qualquer forma, foi realmente muito bom ler um livro que é meio "sonhado" e fantasioso e que leva isso a sério como um jeito amadurecido e bem feito de contar uma história.