Manuel Gimo 03/02/2018
As Incuráveis Vidas da Vila Cacimba!
AUTOR: Mia Couto
TÍTULO: Venenos de Deus, remédios do Diabo: As incuráveis vidas de Vila Cacimba
LOCAL DA PUBLICAÇÃO: São Paulo
EDITORA: Companhia das Letras
ANO DA PUBLICAÇÃO: 2008
PÁGINAS: 95
FORMATO DO LIVRO: eBook (PDF)
SINOPSE:
Bartolomeu Sozinho é um velho mecânico naval moçambicano, aposentado do trabalho, mas não dos sonhos ardentes e dos pesadelos ressentidos que elabora em seu escuro quarto de doente terminal. Ele é atendido em domicílio por Sidónio Rosa, médico português.
A narrativa entrelaça a vida de Bartolomeu, de sua rancorosa mulher, Munda, da ausente e quase mitológica Deolinda, filha do casal, do dedicado Doutor “Sidonho”, bem como de Suacelência, o suarento e corrupto administrador de Vila Cacimba, um lugarejo imerso em poeira e cacimbas (neblinas) enganadoras. São vidas feitas de mentiras e ilusões que tornam difícil diferenciar o sonho da realidade.
Aparentemente, Sidónio veio de Lisboa para curar a vila de uma epidemia. Mas é o amor pela desaparecida Deolinda, por quem se apaixonara em Lisboa, que impulsiona seus passos mais íntimos. Quando Deolinda voltou para sua terra natal, Sidónio viu-se teleguiado pelo sonho de reencontrá-la. Mas Vila Cacimba não é o lugar do médico, nem poderá ser jamais.
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«— Viver é que não tem cura, caro amigo.» (p. 8)
Já não via a hora de pegar uma obra de Mia Couto nas minhas mãos e devora-la por inteiro. Então, eis que vi-me submerso neste "Venenos de Deus, remédios do Diabo", título um tanto quanto ousado.
«Depois de tantos anos, deixamos de viver na casa e passamos a ser a casa onde vivemos.» (p. 13)
Mia Couto dispensa quaisquer tipo de apresentações, portanto vamos directo ao assunto, até porque a obra é curta portanto a leitura é rápida e fluída. Em "Venenos de Deus, remédios do Diabo", somos levados até à Vila Cacimba (assim chamada porque é envolta em cacimbas), e conhecemos seus habitantes. Começando por Bartolomeu Sozinho, mecânico reformado, com uma doença terminal recebe visitas regulares do português Sidónio Rosa, o médico(?) da Vila. Este homem exilou-se no próprio quarto, e este tornou-se a sua nação.
No passado, mais exactamente na era colonial, Bartolomeu fora mecânico naval no transatlântico "Infante D. Henrique", sendo o único tripulante negro daquele navio. Por conseguinte, aos olhos dos outros irmãos moçambicanos negros, Bartolomeu era um herói que vencera horizontes. Mas para Alfredo Suacelência, o administrador da Vila, ele era um preto decorativo para os colonos, um "tripulante apenas como instrumento de uma mentira: de que não havia racismo no império lusitano." (p. 14). Aliás, o passado desses dois, Bartolomeu e Suacêlencia, cruza-se. De tão sinistro esse passado que Bartolomeu Augusto Sozinho se exilou. A propósito, o nome de baptismo de Bartolomeu é Tsotsi Bartolomeu Tsotsi, mas mudou-o por vergonha da sua raça e cultura, no acto que pode ser entendido como auto-colonização (ou seria aculturação/transculturação?).
O enfrentamento entre o paciente e o médico leva-nos àquelas questões: como os portugueses de hoje vêem os africanos de hoje, e vice-versa, levando em conta os factos históricos que une esses povos?
«— Uma coisa aprendi na vida. Quem tem medo da infelicidade nunca chega a ser feliz.» (p. 19)
Então, somos apresentados a Dona Munda Sozinho (sim, feminino de "Mundo"), esposa, mulata, a "semiviúva", do Bartolomeu. Vive em brigas com o esposo doente, o implicante.
Esta fora renegada pela família por se casar com o negro Bartolomeu, razão: fazia “a raça andar para trás”. Bartolomeu também fora renegado pela sua própria família por se envolver com uma mulata, porque era traição. Então, estes dois enfrentaram o mundo por amor. Do fruto deste amor, nascera Deolinda, também mulata porém "mais clara que a própria mãe." (p. 17). Amor lindo este, se diria, não? Mas as coisas mudam. E um acontecimento em especial mudou tudo. E o que é uma mulher nessa nossa sociedade? Vemos o olhar da sociedade na seguinte passagem: "O destino das mulheres é serem culpadas. A idade torna-as ainda mais donas de perigosos saberes. Não é preciso prova. Basta que recaia sobre elas a acusação de feitiçaria. A justiça é sumária, sem juízes, sem juízos. O veredicto está facilitado: as mulheres já foram julgadas antes de haver tribunal." (pp. 30 - 31); e na subjugada Dona Esposinha, mulher do administrador Suacêlencia.
«Saímos para o estrangeiro quando a nossa terra já saiu de nós.» (p. 55)
Bom, vamos falar do português Sidónio Rosa. Este deixou a sua amada Lisboa e se aventura nas terras moçambicanas em nome do amor. Tivera um caso com Deolinda Sozinho, que conhecera em um congresso em Lisboa. "Parecia uma coisa passageira. Que o amor acontece para a gente desacontecer. Mas depois se viu que era mais que uma lembrança teimosa. E fizeram durar correspondência, deixaram crescer juras e promessas. Até que, subitamente, Deolinda deixou de responder às cartas. Desde então, o médico avaliou desejos, pesou saudades." (p. 20). Então, sedento de paixão, o médico ruma até a terra da sua amada em busca dela. Mas quando chega a terra de Deolinda, a Vila Cacimba, Sidónio, homem da ciência, vê-se em choque com tradições e costumes daquele povo, ao mesmo tempo que a Vila está sendo palco de actuação de uma misteriosa epidemia que faz as vítimas afectadas, que são soldados na sua maioria, vaguear, febris e sujos feito loucos, sendo chamados, pelo povo, de tresandarilhos. Ao mesmo tempo, o doutoro Sidonho (assim chamado pelos habitantes locais) descobre que há muito que Deolinda deixara a Vila e partira para um outro lugar que ninguém conhece, supostamente para uma capacitação e que voltaria logo. Mas a verdade é que os motivos "dessa partida" está envolta em mistérios, mentiras e segredos. Nesta longínqua terra africana, Vila Cacimba, os segredos "não se enterram nunca em cova. Ficam em buraco aberto como ferida que nunca ganha cicatriz." (p. 53). Esta Vila "tem o viver de um rio. Manso e vagaroso, mas com fatais enchentes." (p. 85).
«Não seremos nada enquanto governarmos o país como se fosse um quintal e dirigirmos a economia como se fosse um bazar.» (p. 86)
O administrador da Vila Cacimba, Alfredo Suacelência, simboliza os novos-ricos, um tema muito recorrente na escrita miacoutiana. Estes novos-ricos fazem do seu país um "universo feito de empresários sem empresa e de funcionários públicos que apenas desempenham funções privadas." (p. 24). São homens que outrora lutaram pela ideia de união e liberdade, e que agora vêem os seus irmãos com assustador indiferença. São os pobres de ontem; mas os ricos de hoje. Vemos isso no seu desejo de querer uma cura para o suor porque, nas suas próprias palavras, "O suor é um defeito dos pobres. E nós, meu caro Doutor, estamos a combater a pobreza, não é verdade?" (p. 23).
O mais interessante é a rivalidade existente entre Sualência e Bartolomeu. A prova de que o colonialismo português em Moçambique, ou de modo geral o colonialismo em África, não prejudicou a todos nativos. A queda do salazarismo em Portugal não alegrou a todos os negros.
«É isto: a gente nasce sem pedir e morre sem ter licença.» (p. 86)
Devo admitir que apesar de conhecer muito bem a escrita de Mia Couto e as histórias mirabolantes que ele cria; as suas brincriações na escrita (os neologismos), os nomes surpreendentes que ele dá às suas personagens, as línguas moçambicanas incorporadas no seu texto, o lirismo e a poeticidade da sua escrita, é simplesmente incrível. Saboroso de se ler. Eu, porém, não esperava muito deste "Venenos de Deus, remédios do Diabo". Fui surpreendido, contudo. A história prova ser verossímil e intrigante. Senti-me tão perdido quanto o Sidónio Rosa pelas múltiplas revelações. Venenos (verdades) e remédios (mentiras) se confundem numa trama que nos leva a reflectir sobre o racismo, incesto, o esquecimento, a solidão, tristeza e existencialismo. É simplesmente fantástico. Este senhor, Mia Couto, é um poeta-escritor de mão cheia. Tiro-lhe chapéu toda vez que o leio.
«— O sofrimento é sempre a nossa escola maior.» (p. 16)
OUTRAS CITAÇÕES:
«— Sonhar é uma cura.» (p. 9)
«É o esquecimento e não a morte que nos faz ficar fora da vida.» (p. 14)
«Quem não sabe de nada sempre desconfia de tudo.» (p. 16)
«“Todo o médico tem um pouco de mãe” [...].» (p. 20)
«Quem pede sempre, não sabe querer.» (p. 25)
«— Ainda tenho uma dúvida, Dona Munda.
— O que quer saber, Doutor?
— Quem são esses misteriosos mensageiros que trazem as cartas de Deolinda? Quem são eles que ninguém os vê?
— O senhor quer saber muito, Doutor. São familiares. O senhor sabe, aqui, em África, todos são familiares.» (p. 25)
«A casa só é nossa quando é maior que o mundo.» (p. 26)
«A idade é uma repentina doença: surge quando menos se espera, uma simples desilusão, um desacato com a esperança. Somos donos do Tempo apenas quando o Tempo se esquece de nós.» (p. 34)
«— Viajar é muito bom, mas as pessoas deviam morrer no sítio onde nasceram.» (p. 36)
«O senhor sabe, as famílias são caixas de histórias, segredos e mentiras.» (p. 46)
«O suficiente é para quem não ama. No amor, só existem infinitos.» (p. 51)
«Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.» (pp. 57 - 58)
«— Uma mulher adivinha. Uma esposa sente. Uma mãe sabe.» (p. 63)
«Sonhar é um modo de mentir à vida, uma vingança contra um destino que é sempre tardio e pouco.» (p. 77)
«— O tempo é o lenço de toda a lágrima.» (p. 78)
«Neste mundo, as mulheres são falsas e os homens são mentirosos.» (p. 79)
«— As pessoas demoram a mudar. Quase sempre demoram mais tempo que a própria vida…» (p. 83)
«E se Deus não nos ajuda, como recusar auxílio do diabo?» (p. 83)
«A gente não sabe nunca que um filho morreu.» (p. 84)
«Feridas da boca curam-se com a própria saliva.» (p. 87)
«A antiguidade das coisas está no desejo de as esquecermos.» (p. 90)
AVALIAÇÃO: 9.9/10
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Review by: Manuel Gimo
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