Rosa Santana 21/05/2012
"Venenos de Deus, Remédios do Diabo", Mia Couto, Companhia das Letras, 188 páginas.
Entre os venenos destilados por Deus e os remédios espalhados pelo Diabo, na Vila Cacimba, África, nesse paradoxal espaço em que se trocam os papéis, é que Mia Couto distribui seus não menos paradoxais personagens: um médico, um mecânico-poeta e sua esposa Munda, cheia de ardis. Ambos moram em Vila Cacimba.
Sidônio, o médico(?) português, chega à Vila em busca de Deolinda, a mulata por quem se apaixonara, em um congresso no seu país e que há um tempo não via. Ela era filha de Bartolomeu Sozinho e de dona Munda, a quem o marido nomeia 'feiticeira'. O pai da moça, o negro Bartolomeu, se encontra prostrado, vítima de uma doença a que o médico vem curar, atendendo às cartas que a amada lhe envia, e que recebe pelas mãos da mãe. Nelas, a mulata faz vários pedidos a Sidônio, entre outros, esse! A população da Vila está, em sua grande maioria, assolada por uma epidemia que motivou a vinda do médico, via Suacelência, o mandatário local que também quer se ver livre dos suores que o acometem, já que esse tipo de 'doença', é, na verdade, dos pobres de quem ele quer se distanciar!
É esse o meio de que Mia Couto se serve para criar verdades escorregadias que se entrecruzam, deixando-nos em dúvida sobre o que mais vale: o misticismo de Munda, da Vila, da África ou a verdade da ciência, representada pela medicina, pelo médico, por seu país e até mesmo por seu continente? Segundo o conhecimento mítico dos moradores locais, por exemplo, as flores colhidas no cemitério e colocadas em jarros se transformam em mãos que pingam sangue; as doenças são encomendadas; morre-se não por doença, mas por saudade da vida! A esse contrapõe-se o discurso do médico, refutando-o e negando também o fumo, o álcool e, lógico, pregando a favor dos medicamentos...
O entrelaçamento de discursos cria um efeito embaçado, em que não se sabe o que é real ou não. O próprio médico se vê perdido entre as 'verdades' que cada um lhe conta e resolve voltar definitivamente ao seu país. Antes, porém, tem que fazer algo imperioso: visitar o cemitério. Lá se encontra com Munda, que lhe oferece para mastigar 'beijos-de-mulata', flores ali nascidas, "remédio para saudades e tristezas, essas que não tem cura"(182). Sidônio cai no terreno movediço, se vê envolto em névoa que se espalha à sua volta, deixando-o em estado de torpor. Assim, também o leitor, fica meio que vagando entre os fatos cheio de nebulosas.
Mia Couto com esse "Venenos de Deus, Remédios do Diabo, deixa claro ao leitor o quão difusa é a fronteira que separa sonho e realidade, e, também, que nenhum dos discursos pode ser estanque: à ciência, há que se mesclar fantasia e vice-versa.
"É o esquecimento e não a morte que nos faz ficar fora da vida." 25
"Viver é um verbo sem passado." 56