Gabriela M. 18/08/2020Resenha da minha primeira leitura de MurakamiCaçando carneiros, Haruki Murakami
Muitos conhecem ou já viram o nome desse autor nas livrarias e sebos. Meu primeiro contato com Murakami foi brevíssimo: uma amiga devorava 1Q84. Ela tentava explicar o quanto gostava dessa trilogia e como tinha algo em comum com o livro 1984, de George Orwell. Enquanto ela, que sempre considerei prolífica sobre infinitos assuntos, ficou sem conseguir me dizer a trama entre entusiasmos, fui marcada pelo pensamento: um dia vou ler esse autor.
Li 1984 em março de 2018. Sei o mês e o ano da leitura porque fui devastada por aquela distopia; por muitos meses nenhum livro parecia me remeter à profundidade de sensações e sentimentos que tive. Até hoje, talvez não saiba dizer outro livro tão impactante. Um dos pensamentos instantâneos, daqueles que não se sabe como achou seu caminho de volta ao plano de atenção principal e que fica somente um minuto em cena foi: poderei ler 1Q84.
O mundo dá voltas, e a mesma pessoa que me emprestou 1984 recebeu o exemplar de Caçando carneiros como um presente meu. Depois de ter sido lido e de um certo tempo decorrido, o livro encontrou meu olhar e a leitura começou. Esse mesmo objeto que tem em suas linhas uma narrativa específica, me recordam afetividades. Esse sentir da literatura me fazia falta. O compartilhamento, as discussões, os empréstimos, as consultas, as retomadas, as leituras de trechos em voz alta. Isso tudo havia desaparecido aos poucos ao longo de alguns anos de leituras individuais e, em um período de isolamento social combinado com muita conexão virtual, finalmente voltou.
Acredito que é por isso que escrevo agora. Vamos, então, ao livro. Seus personagens não são nomeados: conhecemos alguns por apelidos, outros por descrições físicas ou pelo que são em relação a outra pessoa. Exemplo disso são a garota com orelhas incríveis, J, Doutor Carneiro, Rato, Chefe, o “secretário”. Até o gato não tem nome. E, como um bom universo construído, isso faz sentido e não faz falta alguma.
A trama começa já mostrando que o clima e a narrativa serão repletos de anedotas e pensamentos fluídos. Temos como narrador um personagem principal - sem nome, publicitário e recém-divorciado -, sendo sua maneira de pensar e responder aos acontecimentos o que mais me conectou ao livro. Parece que tanto os segundos observando o nada quanto os acontecimentos fantásticos são percebidos de maneira sagaz e irônica. Este homem, que vive no Japão e é um dos sócios de uma agência publicitária, chama a atenção de uma organização absurda por um de seus trabalhos. Acredito que mais informações que essas sobre o enredo seria uma antecipação de conclusões de pequenas tramas e dúvidas.
Nosso publicitário reflete muito sobre o passar do tempo - ele logo fará 30 anos. Ainda não li “Em busca do tempo perdido”, mas impossível não remeter à essa obra quando três de oito capítulos foram intitulados “Em busca do carneiro” (I, II, III). Ao falar de tempo, também se fala da Vida, do mundo, do universo além de si.
Selecionei um trecho da página 108 para demonstrar a fluidez do pensamento sobre passado, tempo e mundo. É longo. Discorrer sobre reflexões rápidas exige extensa descrição para que, quem não as estão pensando, as entendam:
“Fez-me lembrar certa garota que conheci no tempo em que eu frequentava o terceiro ano primário e aprendia piano. Ela e eu tínhamos idade e nível de aprendizado semelhante e, por causa disso, treinamos juntos algumas vezes. Já não sabia como se chamava ou qual era sua aparência. Recordava-me apenas de seus dedos, longos e brancos, dos cabelos bonitos e do vestido vaporoso. Não consegui me lembrar de mais nada além desses detalhes.
Que estranho, pensei. Eu lhe havia extirpado os dedos, os cabelos e o vestido, e o que restara dela devia viver ainda em algum lugar. Impossível, naturalmente. O mundo continuava a girar, independente de mim. Independente de mim, as pessoas cruzavam o asfalto, apontavam lápis, locomoviam-se para o leste à velocidade de cinquenta metros por minuto ou executavam perfeitamente melodias de conteúdo zero em saguões de hotel.
Mundo. A palavra tinha o dom de me trazer sempre à mente uma imagem da tartaruga e dos elefantes gigantescos sustentando um disco monumental. Os elefantes não percebem o papel da tartaruga, a tartaruga por sua vez não percebe o que os elefantes fazem, e nenhum deles tem noção do que vem a ser o mundo.”
A história é bem encerrada. A trajetória do nosso narrador que acompanhamos ao longo de mais ou menos três meses é concluída com a sensação de que sim, é isso que podíamos conhecer desse publicitário e muito mais do que deveríamos saber sobre o carneiro, se essa ficção fosse real.
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