Higor 13/05/2023
"LENDO PULITZER": sobre leituras surpreendentes
Eu me protegi, inexplicavelmente, de todos os motivos possíveis para não ler "O senhor March", mesmo sendo vencedor (muito merecido, não temo em dizer) do Prêmio Pulitzer de Ficção de 2006, e no final, esta se tornou uma das leituras mais extraordinárias dos últimos meses.
O primeiro motivo era que eu não lera "Mulherzinhas", de Louisa May Alcott, livro-base para fazer de "O senhor March" seu spin-off, e também achei, inicialmente, uma imprudência da autora, Geraldine Brooks, escolher um personagem masculino para ser, justamente, seu protagonista, quando "Mulherzinhas" é conhecido e importante justamente com o papel feminino na história e no contexto em que se encontra.
Outros motivos menores ainda me defendiam para não começar tal leitura: eu encarei recentemente um livro sobre o assunto, a Guerra Civil Americana, e poderia ficar saturado do tema; e a edição da Ediouro era pouco convidativa. Acontece que, lendo aleatoriamente o início de vários livros, vi-me preso em "O senhor March" de tal forma, que quando percebi, eu já tinha passado de 30 páginas e queria mais. Preconceito dos mais bobos, eu reconheço.
Pois bem: a autora escolheu o senhor Robert March, um estudioso e ministro que decide participar da Guerra Civil Americana como capelão, para contar sua história, pois o personagem aparece brevemente no começo de "Mulherzinhas", quando deixa a família para encarar os desafios da guerra, voltando no final para se unir a elas. Essa lacuna é o ponto de partida de Geraldine Brooks, que, curiosa, decidiu ela mesma preencher, e depois da leitura, eu vejo como um trabalho de sensibilidade, cuidado e inteligência muito rebuscadas e pouco vistas por aí no mundo literário.
E o cuidado e bom senso para a composição do livro e do personagem não param: sabendo que as personagens de "Mulherzinhas" foram inspiradas na própria autora e suas irmãs, Brooks faz o mesmo em criar a vida de March, então fez todo um estudo criterioso sobre a vida do pai de Alcott, Amos Bronson Alcott, um conhecido abolicionista, defensor dos direitos das mulheres e de uma vida vegetariana.
Logo, o senhor Robert March é um capelão que busca viver uma vida a Deus regada de vegetais, sem contato com carnes, além de lutar por direitos de liberdade dos escravos e negros, sem tratá-los como mercadorias, mas os auxiliando a ler e a escrever, para que possam ter uma vida digna em sociedade, sem depender de seus senhores para lidar com o básico, porém essencial.
O problema é que o cenário de guerra é remotamente favorável, logo, o capelão se vê confrontado moral e religiosamente com o comportamento de seus colegas de exército, e até mesmo de abolicionistas que, embora concordantes com a libertação de escravos, não abraçam o ideal em sua completude, mas apenas parcialmente. Então, de confortador em meio a dor alheia, o senhor March passa a ser visto como alguém detestável, afrontoso para com Deus e a sociedade por conta de seus ideais muito rígidos.
Tópicos como a existência de Deus, amor ao próximo, o valor de uma vida, dentre tantos outros, são apenas a margem de um profundo lago que é este livro, e pensar e debater sobre tais questões é de grande satisfação, principalmente porque, sim, é um livro sobre um assunto um pouco batido, conhecido, mas necessário, que é a escravização, só que a maneira como a autora conduziu o tema e até mesmo tratou algumas problematizações foram novas, se não chocantes.
Há sim os conhecidos momentos de açoites e agressões contra escravos, mas eu acredito que a violência mental apresentada no livro é de maior impacto, tanto que, mesmo após a leitura de "O senhor March", eu não conseguia parar de digerir aquilo que li, a maneira como os personagens viviam, sim, em um estado físico crítico, mas ainda pior, com a mente em frangalhos, amarrados em um sofrimento muito mais doloroso que algemas e castigos físicos.
A única ressalva que tenho é a de que, em determinado capítulo, há uma intercalação da narração, do senhor March para sua esposa, Margaret "Marmee" March, o que derruba a qualidade do livro grandiosamente, mas que não contarei para não soltar algum spoiler. O alívio é que são poucos capítulos narrados por ela, e o livro, enfim, volta a ter seu poder.
Inesperado e bem executado, "O senhor March" vai deixar em mim um calor e gracejo que eu sequer imaginava encontrar nesta leitura. Se soubesse de tão incrível sensação, eu teria encarado muito antes, mas ainda bem que, enfim, deixei de lado o preconceito desnecessário e o conheci.
Este livro faz parte do projeto "Lendo Pulitzer".